Juízes europeus não deram razão a Manuel Luís Goucha em queixa por discriminação

Tudo começou com uma “piada” na RTP, seguida de uma decisão de um tribunal que falava das “roupas coloridas próprias do universo feminino” que o apresentador da TVI usa. A decisão do TEDH foi uma das três que envolvem Portugal hoje conhecidas.

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Apresentador da TVI sentiu-se discriminado por considerações de juíza sobre o tipo de vestuário que usa Facebook de Manuel Luís Goucha

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) considera que Manuel Luís Goucha não foi discriminado pela Justiça portuguesa, por causa da sua orientação sexual. Pelo menos, “não há nada que sugira” que tal aconteceu. É o que se lê numa decisão publicada nesta terça-feira, na sequência de uma queixa apresentada pelo apresentador da TVI contra o Estado português.

Tudo começou na emissão de 28 de Dezembro de 2009, do talk-show 5 Para a Meia-Noite, que então passava na RTP2, entre a meia-noite e a uma da manhã: Filomena Cautela era a anfitriã, dois convidados famosos dessa edição tinham como missão responder a perguntas de um quiz e uma dessas perguntas questionava quem era “a melhor apresentadora de televisão” daquele ano; a resposta certa, prevista pelo programa, era esta: “Manuel Luís Goucha”.

Goucha apresentou queixa por sentir que a sua dignidade fora ferida. Mas a 24 de Junho de 2011 um despacho de não pronúncia do Tribunal de Instrução de Lisboa causou mais polémica. No texto, a juíza argumentava que o popular apresentador é uma figura pública e, como tal, tem de estar habituado a que os humoristas “captem uma ou outra característica da sua maneira de ser para fazer humor”. Ora “todos”, prosseguia o despacho do tribunal, reconhecem a Goucha “características” que “reflectem atitudes atribuídas ao sexo feminino, tal como a sua forma de se expressar”, para além de que o apresentador usa “roupas coloridas próprias do universo feminino” e apresenta um tipo de programas também eles ligados às mulheres.

Resumindo: a juíza não encontrava intenção no programa da RTP de ofender Manuel Luís Goucha, ao dizer que ele fora “a melhor apresentadora” de 2009.

O apresentador, hoje com 61 anos, decidiu então avançar para TEDH que, em 2012, aceitou a queixa. Já não era apenas o programa o seu alvo (Filomena Cautela, citada pelo Jornal de Notícias, chegou a dizer: “Respeito muito o Manuel Luís Goucha e respeito a sua reacção, se ele se sentiu assim, lamento muito”). Em causa estava o Estado português.

Manuel Luís Goucha alegava a violação de dois artigos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: o n.º 8, que prevê o “Direito ao respeito pela vida privada e familiar”, e o n.º 14, que estabelece a “Proibição de discriminação”.

Em 2008, pouco antes daquele programa da RTP2, divulgara numa entrevista que tinha um companheiro havia anos, que era a pessoa mais importante da vida dele, depois da mãe. Para o apresentador o que aconteceu foi isto: os tribunais nacionais que apreciaram a queixa dele, após o programa do final do ano de 2009, discriminaram-no com base na sua orientação sexual. Foi o que alegou junto do TEDH.

Numa entrevista ao Diário de Notícias, já no ano passado, Manuel Luís Goucha dizia ainda: “Não mudei de género. Não queria ser mulher. E respeito as mulheres como o sexo forte que são. Mas quero ser homem e sou homem. E sou cada vez mais homem quanto mais respeitar as mulheres. A partir daqui entendi que não posso pactuar com aquele tipo de graça [do programa da RTP], porque belisca a minha dignidade e a de quantos, amando de forma diferente, não mudaram de género.”

À revista VIP explicara também, numa entrevista anterior, que “a piada” do 5 para a Meia Noite já não tinha importância. “Que importância é que tem aquela graçola perante a gravidade horrorosa de uma juíza que diz que posso ser insultado na minha dignidade porque uso casacos amarelos ou rosa?”

Delicado julgar humor

Mas o TEDH tem um entendimento diferente de Goucha. Diz que não houve nem desrespeito pela vida privada e familiar nem difamação.

Sublinhando que os indivíduos que pertencem “à categoria de figuras públicas”, ou que “exercem funções oficiais”, têm “direito à vida privada”, tal como direito a ser tratados pelos media ao abrigo dos mesmos princípios éticos e profissionais que estes usam quando lidam com outras pessoas, o TEDH recorda que já teve que pronunciar-se “sobre inúmeros casos que envolvem humor e sátira”. E que a sátira “tem sempre o objectivo de provocar e de agitar”, é marcada pelo exagero.

“Qualquer interferência com o direito dos artistas de se expressarem deve ser examinada com um cuidado particular”, prossegue o TEDH.

No caso em apreciação, o TEDH constata que o queixoso “já tinha ele próprio mencionado a sua orientação sexual em público e nos tribunais nacionais” pelo que, “no contexto, na análise do caso, seria difícil aos tribunais evitar referir” a sua orientação sexual.

É certo que o Governo português considerou ele próprio, nas respostas que deu aos juízes de Estrasburgo, que as expressões usadas pelos tribunais nacionais no caso Goucha foram “discutíveis” e podiam ter sido “evitadas”. Ainda assim, o Executivo fez saber que não acredita que os tribunais portugueses tenham discriminado o apresentador quando apreciaram a sua queixa.

O TEDH partilha desta ideia. O que os tribunais do país fizeram foi “enquadrar” a “piada” proferida no programa à luz do “comportamento exterior” e do tipo de programas apresentados por Goucha.

Concluindo: “Nada sugere que as autoridades portuguesas teriam tomado outra decisão” sobre a queixa “se ele não fosse homossexual”, lê-se no texto da decisão desta terça-feira.

Contactado pelo PÚBLICO, o advogado de Manuel Luís Goucha, João Milagre, diz que já falou com o seu cliente. “Ele entende que fez o que tinha a fazer”, de acordo com a sua “consciência”. Ou seja, apresentou queixa e esta foi apreciada. Agora, “dá agora o caso como encerrado” e “não há muito mais a dizer”. Milagre admite, por fim, que a decisão não é totalmente surpreendente “já que a malha da liberdade de expressão é muito mais abrangente do que as outras”.

Juiz ganha caso

A decisão relativa a Manuel Luís Goucha foi uma das três conhecidas nesta terça-feira envolvendo Portugal. Uma outra tinha como queixosa a jornalista Sofia Pinto Coelho — que viu os juízes do TEDH darem-lhe razão (tal como o PÚBLICO já noticiou esta manhã). E uma terceira foi suscitada por um juiz jubilado, Ilídio José Pereira da Silva, que exercia funções de inspector judicial em 1999.

De acordo com o TEDH, Ilídio José Pereira da Silva apresentou duas acções (a 5 de Abril e a 5 de Maio, ambas de 1999) contra o Supremo Tribunal Administrativo (STA) português, que recusara que ele fosse reembolsado das despesas, no valor de 750 euros, que tinha feito durante uma missão relacionada com as suas funções.

Pereira da Silva contestou não só a recusa de reembolso, mas também a jurisdição do presidente do STA para decidir naquele caso e o facto de não ter sido ouvido. Mas o processo arrastou-se durante anos. O juiz jubilado chegou mesmo a ser multado em 1440 euros, por ordem do STA, por se considerar que estava de má-fé nos diferentes pedidos de clarificação e recursos que ia apresentado.

Em 2010 o caso chegou ao Tribunal Constitucional — Pereira da Silva alegava, entre outros, a falta de imparcialidade do STA. O Constitucional não lhe deu razão.

Recorrendo ao TEDH, Pereira da Silva invocou a violação do artigo 6 da Convenção Europeia — “Direito a um processo equitativo” — que diz, entre outras coisas, que “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial”.

Pereira da Silva alegou ao TEDH não ter tido acesso nem a um tribunal imparcial (já que, lê-se na decisão do TEDH, quatro dos sete juízes que integraram a assembleia plenária do STA já tinham analisado o seu caso anteriormente, enquanto membros da secção de contencioso administrativo daquele mesmo tribunal), nem a uma apreciação “num prazo razoável”.

O TEDH não lhe deu razão em relação à questão da duração do processo, mas diz que ele não teve, de facto, acesso a um tribunal imparcial. Ou seja, houve mesmo violação do artigo 6 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, consideram os juízes. Mais, dizem: Pereira da Silva tem direito a pedir uma indemnização por danos morais.

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