Juíza reconheceu ter retirado filhos de casal português em Inglaterra contra vontade das crianças

Tribunal alegou “abusos emocionais” para retirar os cinco filhos a Carla e José Pedro. Casal reúne-se nesta terça-feira com o adido social da embaixada de Portugal em Londres.

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Daniel Rocha

A retirada dos cinco filhos do casal de portugueses Carla e José Pedro, que vive em Inglaterra desde 2003, foi decidida por uma juíza da Divisão de Família do Tribunal Superior de Lincoln com base em “revelações muito graves” e “provas” apresentadas por um funcionário dos Serviços Sociais e uma funcionária da Children and Family Court Advisory and Support Service (CAFCASS) – uma entidade pública que se identifica como “a voz das crianças nos tribunais de família”, e se apresenta como independente dos tribunais e dos Serviços Sociais.

Sem acusar os pais de maus tratos, abusos ou negligência e sem fazer referências a uma eventual falta de condições económicas para educar os filhos, mas referindo “abusos emocionais” ou o “risco de danos” futuros, a juíza considera, na decisão de Dezembro último, que “simplesmente não é possível devolver as crianças aos pais, pois estas não estariam em segurança”. Em declarações ao PÚBLICO, na semana passada, o secretário de Estado das Comunidades, José Cesário, qualificou de “muito pouco sólidas” as razões invocadas pelo Tribunal de Família para decidir a favor da retirada forçada das crianças de casa.

De acordo com as conclusões da magistrada na audiência final, à porta fechada, que constam de um documento consultado pelo PÚBLICO, os pais defenderam o seu direito e o dos filhos a viverem todos juntos. Carla Pedro pediu ao tribunal que tivesse em conta “a vontade e os sentimentos das crianças” e, dirigindo-se à juíza, disse que a sua decisão “afectaria as crianças para o resto das suas vidas”.

Na decisão, pronunciada em Dezembro de 2013, no Tribunal de Família do Distrito de Lincoln, a juíza Heather Hughson Swindells reconhece que “não atribui peso decisivo à vontade e aos sentimentos das crianças” (sobretudo as mais velhas), porque, diz ela, a sua perspectiva da realidade “foi afectada pelos danos a que há muito tempo estão expostos e pelos seus sentimentos de lealdade [para com os pais], aliás muito compreensíveis”.

No final do processo que opôs o casal português aos Serviços Sociais do Lincolnshire County Council, a juíza considerou que a “retirada da família de origem” traria benefícios para “a identidade e auto-estima” das crianças. Sempre com a expressa intenção de “minimizar os danos” eventualmente infligidos às crianças e em criar um ambiente propício “ao desenvolvimento da sua capacidade em lidar com o impacto [sobre eles] do comportamento dos pais”, o assistente social que acompanhou o processo recomenda que os três filhos mais velhos do casal (um rapaz de 13 anos e duas raparigas, de 12 e 7 anos, à data da decisão judicial) sejam entregues a famílias de acolhimento, e os dois mais novos (de 3 e 5 anos) colocados para adopção. 

Foi esse o plano de vida para as crianças que ficou estabelecido pelo tribunal e que os pais querem agora contestar. O processo de adopção dos mais pequenos – que pode ser irreversível – entra em actividade a partir do próximo 1 de Abril, podendo as crianças ser entregues, definitivamente, a uma família, a partir desse dia.

Encontro na embaixada
A pedido do casal, realiza-se na tarde desta terça-feira um encontro com o adido social da embaixada de Portugal em Londres, José António Galaz, na presença de uma advogada portuguesa que exerce em Londres. O objectivo será avaliar a possibilidade de se interpor um recurso, de se detectar um erro técnico no decorrer do processo, que inverta a decisão, ou de transferir o processo para a Segurança Social em Portugal, o que é desejo do casal. Esta última hipótese é vista como “muito pouco provável” pelas autoridades portuguesas, uma vez que o processo decorreu, e foi concluído, no país de residência da família, como prevê a legislação europeia para situações em que estão envolvidos estrangeiros em questões relacionadas com direito parental.

Depois de ouvidos os Serviços Sociais e os pais, e relativamente às duas crianças mais pequenas, a magistrada também justificou, na decisão final de Dezembro último, fazer uso da cláusula que permite abdicar do consentimento dos pais, na lei de 2002 relativa à adopção de crianças (Adoption and Children Act). De acordo com esta cláusula, o consentimento dos pais – na entrega dos filhos para adopção – é dispensado apenas quando o tribunal avalia o pai ou a mãe “incapaz de dar o seu consentimento” ou considera que “o bem-estar da criança exige que o consentimento parental seja dispensado”.

No seu parecer, decisivo para determinar que os dois filhos mais pequenos do casal seriam colocados para adopção, a assistente social Ildilko Kiss, do Children and Family Court Advisory and Support Service, apontara a relação “pouco próxima” que estes tinham com os pais, com quem sempre viveram, e realçara o lado positivo de as duas crianças, de 3 e 5 anos, estarem a desenvolver laços com as duas famílias de acolhimento e a adaptarem-se a elas como seus cuidadores. O funcionário dos Serviços Sociais Lee Watkinson, por sua vez, acusara os pais de “um comportamento imprevisível e desadequado” e da falta de compreensão das necessidades dos filhos.

Em nenhum momento, a juíza duvidou da avaliação feita por um e outro, e do seu profissionalismo, e reforçou a confiança em ambos perante um depoimento do filho mais velho do casal, que acusou o assistente social de lhe oferecer 50 libras (60 euros) para manter a versão inicial de que o pai lhe batera, e que o rapaz várias vezes desmentiu. E acusou, com base “num equilíbrio das probabilidades”, os pais de instigarem o filho a denunciar o assistente social. O filho mais velho é descrito como estando “dilacerado entre, por um lado, a sua lealdade para com os pais e, por outro, a intenção de se proteger a ele e aos irmãos do comportamento dos pais”.

As boas intenções do casal em colaborar com todo o processo e o seu empenho em recuperar os filhos são postos em dúvida, porque o casal não terá estado em todos os encontros agendados para ver os filhos, que, até Dezembro de 2013, aconteciam todas as semanas. Carla e José Pedro dizem que muito do que consta dos relatórios não corresponde à verdade e acusam os Serviços Sociais de nunca os ajudarem, mas antes “tudo aproveitarem” para lhes tirarem os filhos. Ambos defenderam, em tribunal, que as crianças deviam crescer juntas e junto dos pais. José Pedro negou todas as conclusões dos assistentes sociais e desmentiu que batesse ou tivesse causado qualquer dano aos filhos, que disse “adorar”.


Levados pela polícia
As crianças foram levadas de casa, pela polícia e agentes dos Serviços Sociais, sem ordem do tribunal, no dia 13 de Abril de 2013, poucas horas depois de o filho mais velho ter dito à assistente social que o acompanhava na escola que o pai lhe batera. De acordo com uma avaliação feita, em 2012, pelos Serviços Sociais do Lincolnshire County Council, à situação do filho, este queixara-se da relação conturbada que tinha com os pais, mas manifestara o desejo de ficar com eles. Nessa avaliação, entre Novembro e Dezembro de 2012, desencadeada pelos distúrbios comportamentais do filho, e perante os seus actos violentos, os pais terão admitido dificuldade em lidar com ele, de acordo com as conclusões a que o PÚBLICO teve acesso.

Nalgumas ocasiões, o rapaz, então com 12 anos, fugiu de casa e foi encontrado pela polícia, que foi chamada pelos pais, também preocupados em garantir a segurança dos restantes quatro filhos. Os pais atribuem os distúrbios do filho a uma hiperactividade que dizem ter sido diagnosticada em Portugal, onde chegou a ser medicado quando viveu temporariamente com os avós, mas não reconhecida por especialistas em Inglaterra, o que levou o assistente social a concluir que os distúrbios comportamentais do rapaz eram “sintomáticos de factores [existentes] no ambiente do lar”. No relatório da avaliação de 2012, o rapaz admite ter comportamentos agressivos quando os pais o impedem de comer doces ou o obrigam a ir para o quarto.

Ao PÚBLICO, Carla Pedro desmente que tenha dito, mais do que uma vez, na frente do filho, que ele devia ser entregue a uma família ou instituição ou que tenha feito dele “comentários depreciativos”, como é referido nesta avaliação. Na privacidade de uma conversa com o assistente social, no final de 2012, o rapaz “parecia feliz e bem”, lê-se no relatório. “Disse que estava contente de estar em casa e que amava a sua mãe e o seu pai. Também disse que, desde que voltara [depois de uns dias em casa da vizinha], tudo estava calmo. Reconheceu o seu mau comportamento e manifestou vontade de mudar.”

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