João adorava barcos, emigrou para trabalhar em jardins, acabou morto num beco de Crawley

Sofria de esquizofrenia mas estava medicado. Vivia na Cruz Quebrada. Aos amigos contou que ia para Southampton. Uma rapariga ia arranjar-lhe trabalho. No aeroporto de Gatwick passou uma noite e pediu para falar com o MI6.

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João Esteves foi aconselhado pela polícia a sair do aeroporto de Gatwick, onde passou uma noite, sob pena de ser detido, já que não tinha bilhete REUTERS/Peter MacDiarmid

Dizia que tinha uma grande conta de luz para pagar. E terá sido com este género de desculpas que foi pedindo dinheiro aos vizinhos, na Cruz Quebrada, Oeiras, onde vivia. Desta vez não seria para comprar tabaco — acontecia, frequentemente, pedir dinheiro para cigarros, ou para um café... Desta vez era para a luz. João Esteves, 45 anos, não tinha rendimentos havia anos.

Chegou a “reparar barcos”, a “fazer pranchas de surf”, era “um bom profissional a trabalhar com fibras”, relatam amigos e familiares. Mas desde que lhe fora diagnosticada esquizofrenia, passava os dias por ali, perto de casa, ou no café da Sociedade de Instrução Musical Escolar Cruz Quebradense. Não arranjava trabalho, apesar dos “grandes planos” que tinha: “construir barcos”.

O dinheiro que foi amealhando deu para comprar um bilhete de avião para Inglaterra. Só ida. E para juntar 200 euros, que foi o que levou na carteira. O plano de emigrar levou tempo a construir. Mas foi mantido em relativo segredo, nomeadamente da mãe, com quem vivia. A 15 de Janeiro, Esteves aterrou no aeroporto de Gatwick. Foi morto na cidade de Crawley, a um par de horas de distância, quatro dias depois.

Fernando Afonso, 48 anos, foi dos poucos amigos a quem Esteves contou que pretendia partir. “Fui eu que o levei ao aeroporto”, conta ao balcão do café da Sociedade de Instrução Musical. “O plano dele era arranjar trabalho em Inglaterra, alugar uma casa e depois chamar a mãe para ir viver com ele.”

O julgamento do homem que terá espancado o português, num beco de Crawley, abandonando-o na rua, está a decorrer no tribunal de Lewes. O alegado homicida chama-se Daniel Palmer, um inglês de 24 anos que passou a noite de 18 para 19 de Janeiro de bar em bar, até se cruzar com o português.

Filmou-o, já derrubado no chão, a gemer, apertou-lhe o pescoço com um cordel e tirou-lhe fotografias quando já estava inconsciente, segundo contou esta semana o procurador da coroa Paul Valder, responsável pela acusação pública, mostrando ao júri as imagens retiradas do telemóvel do arguido. Palmer diz que está inocente.

O caso está a ser seguido pelo jornal Crawley News, que vai relatando na sua edição online as sessões do julgamento onde se espera que testemunhem 20 pessoas nas próximas três semanas. A acusação procura reconstruir os passos de Esteves até se cruzar com Palmer. E os passos de Palmer até se encontrar com Esteves.

Havia uma rapariga...
“Levei-o ao aeroporto um bocado contrariado, mas ele pediu-me... disse-me que ia para Southampton”, conta Fernando Afonso. “Disse-me que havia lá uma rapariga portuguesa, que ele tinha conhecido havia anos, quando trabalhava nos barcos, e que ela tinha lá uma firma, que lhe ia arranjar trabalhos de jardinagem... Se calhar ele combinou encontrar-se com ela no aeroporto e ela não apareceu, se calhar ela viu o aspecto dele e já não era o mesmo aspecto do homem que ela tinha conhecido havia anos e foi-se embora... não sei...” Admite que não tem certezas, nem sabe o nome da rapariga. “Crescemos juntos. Divertimo-nos à brava. Safei-o muitas vezes, porque ele era daqueles que não oferecia resistência... atiravam-no ao chão e ele ficava lá.”

A irmã de João Esteves, Margarida Esteves, 39 anos, ela própria emigrada em Inglaterra, também tem a convicção de que o irmão não foi “à aventura”. Teria feito contactos. Haveria até, eventualmente, uma promessa de emprego. Diz que a polícia inglesa lhe contou que João esteves terá mesmo apanhado um autocarro para Southampton no dia em que chegou a Inglaterra. Em busca da tal “rapariga”.

Na quinta-feira, em tribunal, os depoimentos de dois agentes das forças de segurança britânicas, citados pelo Crawley News, acrescentaram detalhes à história que tanto Fernando como Margarida gostariam de conhecer melhor: o que aconteceu a João depois de aterrar em Gatwick?

Mísseis e MI6
Will Hollingdale trabalha no aeroporto de Gatwick. A 17 de Janeiro, dois dias depois de Esteves ter aterrado, cruzou-se com ele. Estava um pouco “desgrenhado”, a barba por fazer. “O senhor Esteves disse-me que esperava poder apanhar o avião de regresso a Portugal no dia seguinte” e que contava que alguém lhe fosse lá levar dinheiro para pagar a passagem.

Mas no dia seguinte, Esteves continuava no aeroporto. E Hollingdale explicou-lhe que não podia. Era proibido. O português disse-lhe então que queria falar com o MI6, os serviços secretos britânicos, porque se tinha cruzado com um vendedor de mísseis.

Um agente da unidade de contra-terrorismo, Graham Harris, foi chamado para falar com o português. O depoimento de Esteves, contudo, não foi considerado credível. Para além da história do fornecedor de mísseis, o português explicou que tinha ido para Inglaterra porque lhe tinham prometido um trabalho em Southampton, mas que a promessa não se tinha concretizado, e que, em tempos, tinha estado internado numa unidade psiquiátrica...

Os agentes insistiram: tinha de sair do aeroporto e não poderia voltar nas 24 horas seguintes sob pena de ser detido. Deram-lhe o contacto da Crawley Open House, que dá apoio a pessoas sem-abrigo. Indicaram-lhe que autocarro deveria apanhar.

Passava das 22h quando, no albergue de Crawley, disseram a João que já não havia camas livres. Deram-lhe um saco-cama e aconselharam-no a passar a noite à porta.

“Sonhava com altos voos”
Margarida Esteves não fazia ideia dos planos do irmão — o que não é de estranhar porque não se davam. Mas quando a polícia inglesa lhe tocou à porta e lhe contou que tinham encontrado João morto sentiu um aperto — teria ido à procura dela? “Nas coisas dele não havia qualquer contacto meu, a minha morada. Penso que não a pediu a ninguém antes de partir. Também quis saber se tinha levado os medicamentos. E tinha levado.” A medicação mantinha-o estável, continua.

Contudo, que mesmo com os remédios, era perceptível que João tinha um problema, por vezes andava “mais apático”, contam os vizinhos da Cruz Quebrada. Agressivo, não. "Era uma pessoa muito estimada aqui, inteligente”, afirma António Costa, 65 anos, vizinho. “Mostrava-me os desenhos com os projectos dos barcos. Estava farto de não ter trabalho...”

“Sonhava com altos voos”, remata Fernando. “Mas era preciso dinheiro.” E dinheiro não havia — João Esteves e a mãe eram apoiados pelo centro social da paróquia. O pai e outro irmão morreram há anos.

Na madrugada de 19 de Janeiro, Esteves não ficou à porta do albergue. Foi visto a beber com outro “cliente” da Crawley Open House.

Já Daniel Palmer ter-se-há aborrecido nessa noite com uma namorada. Tiveram uma discussão ao telefone. Palmer chorou. Foi a vários bares — e terá sido expulso de um por ter empurrado alguém. Estaria embriagado. O procurador Paul Valder contou tudo isto em tribunal porque considerou que estes factos eram importantes para perceber o “estado de espírito” em que se encontrava Palmer quando se cruzou com aquele que, aparentemente, era apenas um desconhecido: João Esteves.

Já depois de o deixar inconsciente, o inglês telefonou a um amigo, disse que tinha sido atacado por um homem com uma faca, que lhe tinha batido e que precisava de petróleo e de um isqueiro. “Ele está coberto com o meu ADN”, terá dito, segundo o Crawley News. O amigo de Palmer disse-lhe que não tinha petróleo.

João Esteves foi encontrado inconsciente, com graves ferimentos na cabeça, pelas 3h25. Morreu já no hospital.

A secretaria de Estado das Comunidades faz saber que não tem registo de nenhum pedido de apoio relacionado com este caso.

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