“Já tinha dito que o matava e foi o dia”

Habitantes da Quinta do Conde dizem que o construtor ameaçava publicamente que um dia mataria o vizinho, agente da PSP. Mas sabem pouco sobre a origem do desentendimento.

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A casa do homem que disparou a caçadeira Patrícia Martins
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O cão da família das vítimas Patrícia Martins
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A casa onde moravam o agente da PSP e o filho Nuno Ferreira Santos

Os vários tiros de caçadeira disparados por um idoso e que mataram três pessoas numa rua pacata na Quinta do Conde, em Sesimbra, não foram uma surpresa absoluta para os vizinhos. “Já estava à espera que isto acontecesse. Quer dizer, estava à espera que se pegassem um dia. Não esperava era este desfecho” – as palavras são de uma moradora, que habita há 40 anos na rua, mas que diz conhecer mal as pessoas envolvidas: um construtor civil reformado, de 77 anos, que disparou a arma de dentro de casa; um agente da PSP, com cerca de 50 anos, que vivia quase em frente; o filho deste, de 23 anos; e um militar da GNR, que chegou ao local após os primeiros disparos e acabou por ser a terceira vítima. Tinha 25 anos.

Tal como a maioria das pessoas que têm algo para contar, a vizinha não quer ser fotografada, ou sequer identificada pelo nome. “Sempre me dei bem com toda a gente. Uma pessoa tem medo de represálias”. 

Os relatos falam, quase todos, de uma discórdia por causa de cães, de um episódio em que o construtor bateu com um martelo na cabeça do polícia e de uma indemnização decidida depois em tribunal. E há ainda quem lembre que o construtor há muito ameaçava o polícia de morte e comentava publicamente que acabaria por matá-lo. 

Aquela vizinha conta a mesma história incompleta que vários outros: havia uma quezília antiga, mas não apenas por causa do rotweiller do agente da PSP. Em tempos, havia um outro cão, este do autor dos disparos e que, entretanto, morreu atropelado. Nessa altura, recorda a moradora, a família das vítimas era dona de um outro cão, “também de porte grande”. Ninguém parece saber as razões exactas do desentendimento. A Quinta do Conde não é uma terra grande, mas também não é o tipo de sítio onde toda a gente se conhece. Os censos de 2011 registaram 25.606 habitantes.

Semelhante a muitas outras, a Rua Alexandre Herculano (naquela zona, as ruas têm nomes de escritores) são duas fileiras de vivendas de cada lado, muitas a acusar várias décadas de idade. É perpendicular à Avenida Principal, uma das maiores da terra. Os carros são poucos e é possível andar a pé no meio da estrada. Há cães em muitas das casas e algumas têm quintais e galinheiros. Uma das vivendas tem uma lancha de borracha no pátio em frente à casa. Outra, uma cadeira de rodas, tombada de lado, em aparente abandono. Uma minoria das casas tem jardins mais cuidados. Entre as vivendas, surge ocasionalmente um lote de terreno vazio, com lixo e restos de materiais de construção. 

A terra, que tem há 20 anos o estatuto de vila, começou a desenhar-se no início da década de 1970, “ a partir do parcelamento clandestino de uma propriedade rústica e consequente venda de lotes onde os novos proprietários foram construindo moradias”, explica o site da Câmara Municipal de Sesimbra.

Na esquina defronte da casa das vítimas, que fica na curva num dos extremos da rua, duas crianças tinham vindo satisfazer a curiosidade deixada pelos acontecimentos do dia anterior. Uma delas mora perto, mas não conhecia nem o atirador, nem as vítimas e diz que nunca tinha visto o rottweiler – que naquele momento descansava pachorrentamente dentro de uma casota, onde uma tabuleta ostenta o nome: Kaiser. Para ver há as marcas dos tiros no muro branco da vivenda, as manchas de sangue na estrada e alguns restos das fitas com que a polícia tinha vedado a zona no dia anterior. 

Num dos lotes vazios, um grupo de moradores apanha figos. Recordam o episódio da agressão. “Há uns sete ou oito anos, deu com um martelo na cabeça do que faleceu e teve de pagar uma indemnização”, diz o homem. Mais tarde, alguém acrescentaria que a indemnização era de 40 mil euros. E outra pessoa disse ainda que, na sequência dessa agressão, o filho do agente tinha partido os óculos ao construtor e acabara obrigado a pagá-los. 

A indemnização terá azedado ainda mais a relação entre o construtor e a família do agente da PSP. “A GNR já tinha sido avisada de que isto podia acontecer”, diz uma moradora, acrescentando que o aviso tinha sido feito pela própria filha do agressor, que mora na mesma casa, no andar de cima. A GNR local não quis falar com o PÚBLICO. O comando territorial de Setúbal afirmou ter apenas registo de uma queixa por agressão, apresentada pelo agente da PSP e datada de 2011.Não tinha qualquer informação de eventuais avisos. 

Há, porém, quem indique haver mais para contar, mas se recuse a falar. “Só conheço uma das versões, por isso não vou falar”, afirma o dono de um café. Que versão? “Eu conheço o ti’ Rogério”, diz, referindo-se ao homem que disparou a caçadeira e que está agora hospitalizado, em situação estável, depois de alegadamente se ter tentado suicidar com a mesma arma. A breve conversa é ouvida por um cliente ao lado, que atira: “Não quero falar. Mas as histórias nos jornais, do cão… O que é aquilo?” Apressa-se a terminar o café e sai sem responder a mais perguntas. Já num restaurante próximo, a empregada, jovem, só sabe “o que as pessoas põem no Facebook”. E, pelo que conta, o que se comenta na rede social não é diferente do que se diz nas ruas.

De acordo com o relato de alguns habitantes, foi depois ser obrigado a indemnizar a vítima por a ter agredido com um martelo que o construtor terá começado a dizer que iria matar o vizinho. “Já não era a primeira vez que ameaçava que havia de matar. Dizia isso a outras pessoas e consta que já tinha dito ao próprio senhor”, diz a moradora de há 40 anos. 

A ameaça era conhecida. Albino Dias, 75 anos, emigrante há 50 na Alemanha, vem à Quinta do Conde apenas nas férias, mas já tinha ouvido a história e nem sequer conhecia os protagonistas. “Já tinha dito que o matava e foi o dia”.

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