Isolda Atayde acredita que as crianças transgénero podem ter uma infância feliz

A activista mexicana esteve em Lisboa para dar o seu testemunho enquanto mãe de uma criança que nasceu rapaz e hoje vive “a tempo inteiro” como uma menina de sete anos.

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Isolda Atayde esteve em Lisboa no início de Outubro a convite da Amplos Nuno Ferreira Santos

“Ela” era um rapaz quando nasceu, diz Isolda Atayde. Pode parecer estranho, desculpa-se, mas é o que é: “ela”. Com naturalidade, esta mãe mexicana de 37 anos conta como percorreu um caminho que, até há pouco tempo, lhe era totalmente desconhecido: desde a incredulidade e o medo à “calma interior” de perceber que o seu caso não era único e que o seu filho transgénero podia ter uma infância feliz.

Um livro e uma terapeuta ensinaram-lhes uma primeira de várias coisas: “Ter o apoio dos pais faz toda a diferença para estas pessoas no futuro”, diz Isolda Atayde numa entrevista ao PÚBLICO. A activista — que deixou o trabalho de contabilista a tempo inteiro — dedica-se agora a partilhar a sua experiência e todo o tipo de informação útil na sua página no Facebook e em encontros internacionais, como o realizado este mês em Lisboa.

Na 5.ª Conferência Internacional de Associações de Pais de LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgéneros) — organizada nos dias 10, 11 e 12 de Outubro pela Amplos (Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e identidade de género) — Isolda Atayde partilhou o seu testemunho. A associação portuguesa diz que foi a primeira vez que o tema das crianças de género diverso foi tratado em Portugal.

A história de Isolda Atayde é tanto sua, como do rapaz que deu à luz, há sete anos, diz. Com pouco mais de dois anos, a criança rejeitava brinquedos masculinos, só queria bonecas e escondia-se nos armários para vestir saias e vestidos. Sentia vergonha e chorava quando lhe diziam e insistiam que era um rapaz. Um dia, com apenas três anos e meio, disse à mãe: “Eu sei que nasci menino, mas sou uma menina e quero ser uma menina.”

Até esse dia, Isolda e o marido travavam batalhas diárias a tentar contrariar a criança. “Quando não temos informação, temos medo”, sublinha Isolda. “Quando alcançamos a informação e adquirimos conhecimentos sobre o tema, conquistamos uma grande calma interior, aprendemos a apoiar verdadeiramente a nossa criança. O apoio existe sempre, mas é preciso ter informação para não ter medo.”

Acima da incompreensão
Com quatro anos, a criança escolheu um nome de menina. Sentia-se melhor quando a deixavam ser como a personagem com que se identificava sempre nos filmes da Disney: uma “princesa” e nunca um “príncipe”. A criança pôs de lado todas as roupas de rapaz e deixou crescer o cabelo. Primeiro, apenas no espaço da família, onde os avós a aceitam como ela é, embora com “dificuldade em entender o assunto — o transgenderismo”. “O amor pela neta é maior que essa incompreensão. Às vezes, ficam um pouco confusos, mas amam-na como ela é”, diz Isolda.

A “transição” fora da família aconteceu um pouco mais tarde, há um ano e meio, quando a criança tinha cinco anos. “É um processo, não deve ser forçado nem atrasado. Aquele era o momento certo para ela”, defende Isolda Atayde.
Um processo difícil e que tem várias fases, também para os pais, reconhece: “Primeiro, o não sabermos o que se passa, depois a zanga de nos culpabilizarmos como pais, de pensarmos que falhámos nalguma coisa, e depois o aceitarmos a realidade”. No fim de tudo, resta ainda “o processo de luto”, confessa. “Não é que esteja morta, mas temos de abandonar aquela criança que pensávamos que era a nossa e acolher outra que já existia mas estava escondida.”

A família mudou-se, há um ano, para os Estados Unidos, para fugir ao “preconceito” e à “constante intimidação” na Cidade do México, onde vivia. “Não digo que ela não vai sofrer discriminações mas, pelo menos, nos Estados Unidos existem leis que protegem os seus direitos e impedem qualquer tipo de discriminação com base na identidade do género.”

O casal, que tem também uma filha de quatro anos, vive no estado de Nova Iorque, onde quase toda a gente conhece Isolda e o marido como pais de duas raparigas, agora que a mais velha passou “a viver como uma menina a tempo inteiro” — na escola, nas actividades não escolares, nos eventos sociais, sempre.

“Queríamos ter uma criança feliz. Para nós, tentar reprimir a sua verdadeira natureza seria criar uma bomba-relógio. Não queríamos criar uma criança que poderia vir a ser uma adolescente deprimida ou dependente de drogas”, diz Isolda. “Ou ainda pior.” Quando procurava informação, na Internet, a única coisa que Isolda encontrava sobre o tema eram notícias de crimes contra pessoas transgénero. Ou de suicídios. “É assustador, claro. Não queremos isso para os nossos filhos.”

Orientação sexual versus transgenderismo
Isolda Atayde percebeu, pela primeira vez, a diferença entre “orientação sexual” e “transgenderismo” quando leu o livro The Transgender Child, de Rachel Pepper e Stephanie Brill. “Li o livro e compreendi. Chorei muito.” Foi como ouvir a voz de uma pessoa a descrever-lhe a sua criança. “Pela primeira vez, soube o que fazer com ela. Foi uma mudança de 180 graus no seu estado de espírito.” Antes disso, a criança andava deprimida, não queria sair de casa nem ir à escola, onde os rapazes gozavam e, por vezes, lhe batiam. “Depois, voltou a ser uma criança feliz.”

A mudança também aconteceu por “sorte”, refere Isolda Atayde, quando ainda viviam na Cidade do México. “Sorte” por terem encontrado uma terapeuta, especialista neste tema, que não praticava “uma terapia reparadora defendida por outros terapeutas”. E explica: “Ela disse-nos que a única forma de a apoiar era  acompanhá-la e aceitar, não a incentivar mas também não a desincentivar, e vermos onde é que esta viagem nos levaria.”

A viagem vai no princípio. Manter (ou não) corpo de menino será uma opção pessoal, aos 18 anos. É a partir dessa idade que são permitidas as operações para mudar o sexo nos Estados Unidos e noutros países. Mas nem todos os transgéneros o fazem, explica Isolda Atayde.

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