Instituições de solidariedade reinventam respostas

Na resposta às situações de desemprego, pobreza e exclusão, o empreendedorismo encontra obstáculos que não resolve: como convencer um canalizador que faz uns biscates a constituir-se como empresário, quando os impostos sobem e a protecção social recua?

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nFactos/Fernando Veludo

O processo está em curso. Empurradas pela crise económica, incitadas pela União Europeia, instituições particulares de solidariedade social e outras entidades que fazem parte da economia social tentam descobrir como desenvolver práticas inovadoras, sustentáveis, promotoras de autonomia.

Em todo o país, um número indeterminado de pessoas já se fechou em salas a assistir ao documentário “Quem se importa”, de Mara Mourão. Discutiram a partir do que viram desfilar no ecrã: pessoas que tentaram melhorar a vida alheia e não apenas ganhar dinheiro, como Muhammed Yunus, prémio Nobel da Paz, economista do Bangladesh que inventou o microcrédito.

Chama-lhes empreendedores sociais. Cristina Parente, do Departamento de Sociologia da Universidade do Porto, diz que transmitem uma “mistura de actividades arrojadas, de carácter dinâmico e inovador, que exigem diligência e pró-actividade, porém aplicadas a objectivos sociais”.

O termo remonta à época vitoriana tardia, ao final do século XIX, mas agora “está na moda”, nota Sérgio Aires, presidente da Rede Europeia Anti Pobreza – EAPN. E a “moda” veio de onde vem o dinheiro.

A União Europeia lançou um plano de acção específico em 2011: a Iniciativa Empreendedorismo Social. Já no ano passado, quando incitou os Estados-membros a reorientarem o investimento social, a Comissão Europeia reclamou mais envolvimento das partes interessadas, sobretudos dos parceiros sociais e das organizações da sociedade civil; exigiu estratégias de inclusão activa; instigou a explorar abordagens inovadoras de financiamento, como o microcrédito e as empresas sociais.

“As empresas sociais apresentam centenas de exemplos bem-sucedidos da forma como a Europa pode ajudar a melhorar os seus modelos de negócio, estando mais centradas no aumento do bem-estar das pessoas e menos na pura obtenção de lucro”, discursou o comissário responsável pelo Emprego, pelos Assuntos Sociais e pela Inclusão, László Andor, o mês passado, em Estrasburgo, numa conferência sobre empreendedorismo social. “Agora, mais do que nunca, precisamos da sua capacidade de criação de empregos”, enfatizou também o vice-Presidente da Comissão Europeia, Antonio Tajani, responsável pela Indústria e pelo Empreendedorismo.

O programa Emprego e Inovação Social 2014-20 deve canalizar 85 milhões de euros para o mercado social. Nesse período, o mercado social e o empreendedorismo social deverão figurar entre as prioridades dos Fundos Estruturais – Fundo Social Europeu e Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional. Para facilitar a iniciativa privados, a UE criou o Fundo Europeu de Empreendedorismo Social.

Sérgio Aires aplaude a orientação para trabalhar mais com as pessoas e não apenas para elas. Teme é que haja quem passe desse plano, que é o da participação, para a da mera responsabilização individual, como se não existisse um contexto social e económico em cada situação concreta de desemprego, pobreza ou exclusão.

“Não há coisa mais falaciosa do que pedir às pessoas para fazerem coisas que elas não são capazes de fazer”, comenta. “A ideia de que todos devem ser capazes de enfrentar os seus problemas cai sempre na punição dos que não conseguem”, adverte. A experiência diz-lhe que sobram obstáculos. Como convencer um canalizador que faz uns biscates a constituir-se como empresário, quando os impostos sobem e a protecção social recua? “As pessoas trocam a economia informal pela economia formal se ganharem mais dinheiro e tiverem mais protecção social”, salienta.

A inserção no mercado de trabalho é uma das maiores dores de cabeça de quem trabalha com grupos desfavorecidos. Não é, porém, o único caminho por onde se espera que o sector social seja capaz de inovar.

No Verão do ano passado, Marco António, então secretário de estado da Segurança Social, explicou a misericórdias, instituições particulares de solidariedade social e mutualidades que o novo quadro comunitário de apoio 2014-2020 teria 20 mil milhões para distribuir por quatro eixos e que em todos eles a Economia Social desempenharia um papel. Apontou-lhes duas áreas prioritárias: deficiência e demografia – “na tripla vertente de fecundidade, natalidade e envelhecimento activo”. 

A maior parte dos lares de idosos foi feita a pensar num paradigma de envelhecimento que já não existe, admite Carlos Andrade, vice-presidente da União de Misericórdias Portuguesas. Estão preparados para acolher maiores de 65 anos. Ora, a idade média de quem os habita, agora, ronda os 80. Muitos estão na casa dos 90. Aumenta a população com diagnóstico de demência. “Temos de olhar para o dinheiro que aí vem como uma oportunidade para nos adaptarmos à nova realidade”, analisa. Uma coisa parece-lhe evidente: “será preciso criatividade.”

Com ou sem o documentário “Quem se importa”, distribuído pela Fundação EDP precisamente para inspirar, discute-se, por exemplo, a aposta em pequenos serviços de comunidade para criar emprego local e adiar até ao limite o dia em que os idosos têm de sair das suas próprias casas; ou o avanço para centros de noite para quem faz a sua vida de dia mas teme o que a noite traz.

O sector solidário já ia ensaiando. A Fundação Social do Porto experimentou facilitar o alojamento de estudantes universitários em casa de idosos isolados, por exemplo. Entretanto, quem tem preocupações de lucro também trata de abrir caminho: um aluno do Instituto Politécnico de Bragança, por exemplo, lembrou-se de conceber uma empresa destinada a tomar conta de idosos como quem toma conta de crianças enquanto os pais vão ao cinema ou passam o fim-de-semana fora.

O envelhecimento não é alheio à dificuldade de conciliar vida profissional, pessoal e familiar. Eleutério Alves, vogal da Confederação de Instituições Particulares de Solidariedade Social, lembra a necessidade de se alargar os horários de infantários e creches. O grande problema, enfatiza, é a sustentabilidade. A inovação, parece-lhe, terá de ir por aí. “Não se pode estar só a depender da comparticipação do Estado. E as famílias têm menos capacidade financeira, não podem pagar mais.”

Há, na União, quem esteja concentrado na busca de formas alternativas de financiamento. Está a ser desenvolvida uma Bolsa de Valores Sociais. Em Outubro, foi criado um código de conduta para o microcrédito. Ao mesmo tempo, há cada vez mais quem recorra ao crowdfunding.

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