Não houve um dux paranóico a conduzir jovens do Meco à morte

Ministério Público arquiva caso, mas advogado das famílias dos jovens vai tentar anular decisão. Procurador que investigou o sucedido diz ter sido pressionado através de cartas anónimas para acusar alguém de crime.

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Os seis jovens que morreram no Meco em Dezembro não foram coagidos em momento nenhum pelo único sobrevivente da tragédia, o Dux João Gouveia, tendo sempre agido de livre vontade durante o trágico fim-de-semana de Dezembro passado. Não houve bebedeiras entre os veteranos da Universidade Lusófona antes de o mar lhes ter tirado a vida e mesmo o ritual do rastejamento observado pela vizinhança da casa onde estavam hospedados foi, afinal, feito com bolas de Natal atadas aos pés, e não com pedras, ao contrário do que asseguravam várias testemunhas.

Estas são as convicções do procurador da República do Tribunal de Almada que decidiu arquivar o caso, decisão da qual as famílias das vítimas já anunciaram que irão recorrer. Os investigadores consideram que ficou suficientemente indiciado que o fim-de-semana no Meco se destinou, efectivamente, à realização de uma praxe académica. Mas descartam a possibilidade de o ritual ter tido os contornos de submissão a João Gouveia que muitos pretendem, nomeadamente as famílias. Afinal, apesar de se encontrar numa posição hierarquicamente superior aos colegas no que ao código de praxe diz respeito, não era o mais velho do grupo nem o mais avançado nos estudos. “Não era de esperar que seis pessoas esclarecidas se deixassem manietar por um acto paranóico dum qualquer dux, prescindindo, no extremo, de lhe desobedecer”, observa o magistrado, chamando ainda a atenção para o facto de, nesse cenário, serem seis os jovens, dois dos quais rapazes, contra apenas um. Os cadáveres não apresentavam, aliás, sinais de terem tido os membros amarrados.

Depois, os SMS trocados durante o fim-de-semana entre os jovens e familiares e amigos seus revelam uma boa disposição pouco compatível com qualquer clima intimidatório, como a mensagem que Ana Catarina Soares, alcunhada como Arruaceira, envia ao namorado: “Tive a rastejar e a mamar [beber] lol”.

O facto de João Gouveia não ter levado consigo, no fatídico passeio até à praia, a colher de pau – “a mais nobre e simbólica insígnia da praxe”, segundo o código ritual  – mostra, segundo o despacho de arquivamento, que terá abdicado, nesse momento e daí em diante, do seu ascendente hierárquico. Acabou por “se submeter aos mesmos momentos dramáticos dos amigos e colegas, com a diferença de que o Destino lhe permitiu o salvamento”, escreve o procurador, explicando ainda que não lhe competia proteger a vida dos companheiros. Seria, por isso, desproporcionado exigir-lhe um comportamento diferente daquele que teve, quando também esteve prestes a afogar-se. Daí não se verificarem indícios dos crimes sob suspeita – homicídio (voluntário ou negligente), exposição ao perigo, coacção e favorecimento pessoal.

A possibilidade de terem estado presentes no Meco outros jovens conhecidos dos sete estudantes choca com um facto apurado durante as investigações: só os telemóveis destes jovens accionaram as células das antenas da zona, o mesmo não tendo sucedido com os aparelhos de outros colegas que chegou a dizer-se que ali teriam ido ajudar a praxar as vítimas. Não é atribuída credibilidade a depoimentos da vizinhança segundo os quais foram ali vistas mais pessoas trajadas com o uniforme académico. O mesmo sucede em relação às pedras com que terão sido observados a rastejar: depois de ter garantido às televisões que isso tinha, de facto, sucedido, um casal que ali mora disse às autoridades que se tinha equivocado e que as pedras mais não eram, afinal, do que bolas de um pinheiro de Natal.

Foi com um espírito “de convívio e reflexão académicos” que naquela noite de Dezembro os jovens resolveram caminhar 5 km até à praia, trajados. Segundo donos de restaurantes por onde passaram, iam a falar uns com os outros, sem alaridos. As bebidas alcoólicas mais fortes compradas para a ocasião foram mais tarde encontradas na casa alugada intactas - uma de whisky e duas de amêndoa amarga. Apenas uma terceira garrafa de amêndoa amarga foi levada para a praia.

O que se passou a seguir? Pelo que o dux contou às autoridades, sentaram-se na areia a conversar, ignorando o perigo que corriam: donde estavam não conseguiam ver a zona de rebentação e o mar era uma imensa mancha escura. Quando o frio e a humidade estavam quase a convencê-los a regressar sentiram o brutal impacto da massa de água que os arrastou para dentro do mar. Como se tivessem sido sugados para “dentro uma máquina de lavar roupa”. O dux diz ter perdido de vista os outros, embora tenha ouvido os apelos desesperados de uma das raparigas, os trajes negros a tolherem-lhes os movimentos. Como sobreviveu? Por sorte, explicou, e talvez por ser praticante de bodyboard. Desenvencilhou-se da capa e conseguiu arrastar-se até ao areal, onde vomitou e foi encontrado “num patamar de quase falência vital”.

Depois surgiram múltiplas teorias sobre o sucedido. As reconstituições televisivas e as notícias a contaminarem, segundo as autoridades, a investigação. Até o procurador foi alvo de pressões: cartas anónimas incitavam-no a responsabilizar alguém pela tragédia, a maioria dos pais das vítimas fazia idêntica exigência. Perante o arquivamento, o advogado das famílias, Vítor Parente Ribeiro, vai requerer a nulidade do inquérito desenvolvido pelo Ministério Público, pelo facto de João Gouveia não ter sido constituído arguido. Solicitará ao mesmo tempo a abertura de instrução, só possível, segundo a maioria da jurisprudência, com a existência de arguidos. Para o advogado, o processo "está eivado de anormalidades".

"Houve uma intenção, por parte das autoridades, de fazer cair em contradição as testemunhas desta praxe que foram interrogadas - até ao ponto de elas dizerem que afinal já não se lembravam bem do que tinham presenciado", critica Parente Ribeiro.

 

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