I love IRS

Esta é a história da mulher que decidiu amar o IRS. Não foi paixão à primeira vista, como facilmente se imagina. Pelo contrário, ao princípio a relação era de ódio visceral. O IRS dava-lhe azia, torcia-lhe as entranhas, causava dores de estômago.

O preenchimento da declaração anual constituía um martírio. E inútil era o padecimento, pois feitas as contas, ao invés de valores a receber, sempre havia uma factura a pagar. Depois de um ano inteiro a mutilar mensalmente o salário da senhora, eis que os cofres do Estado ainda tinham fome.

Ela não entendia o que estava errado. E é natural que assim fosse. O IRS, apesar dos avanços na descomplicação da administração pública, mantém-se como uma teia burocrática impenetrável, onde convivem titulares, contribuições, rendimentos, isenções, englobamentos, retenções, quotizações, actos, prazos, códigos, tabelas, prestações, subsídios, actividades, majorações, taxas, pagamentos, créditos, encargos e outros itens do rico léxico tributário. E ela, como qualquer um, perdia-se com frequência nesse labirinto.

É compreensível. Na altura do imposto, passamos o tempo todo a dizer “tenho de fazer o IRS” – expressão clássica que se alguma virtude tem é a da procrastinação fiscal. Pronunciá-la é admitir que vamos deixar para o dia seguinte o embate com o programa de preenchimento informático da declaração.

Quem não tenha à-vontade com a coisa, vai cair em muitos buracos. As Finanças esforçam-se por tornar o processo mais compreensível e a versão actual já contém um botão para “Ajuda”, outro para “Ajuda por temas” e um terceiro que diz “Facilitador”. Falta um quarto para nos ajudar a encontrar a ajuda certa.

Há um certo desperdício gráfico digital na folha de rosto do IRS. O primeiro separador, o quadro 1, só tem um número a preencher e o quadro 2, um ano. Nos quadros 4 e 6 limitamo-nos a assinalar uma única escolha. Porque não se põe tudo numa só página? Não venham dizer que são elementos incompatíveis. Afinal, no quadro 7, a indicação do NIB para transferência bancária aparece a seguir ao misterioso campo “Sociedade Conjugal – Óbito de um dos Cônjuges” e aos “Ascendentes e Colaterais até 3.º Grau em Economia Comum”. Ali juntam-se o marido morto, o banco da esquina e a avó Adelaide.

O quadro 5 é o terror dos emigrantes. Pois se mora fora, tem de escolher entre as taxas gerais do art.º 68.º do CIRS, relativamente aos rendimentos não sujeitos a retenção liberatória do art.º 72, n.º 9 do CIRS, ou pelas regras dos residentes do art.º 17.º-A do CIRS. Desculpem, mas nem com o facilitador se chega lá.

Há oito quadros mas numerados de um a nove. Um deve ter ficado pelo caminho, entre um Orçamento do Estado e outro.

Passada esta primeira etapa, vêm os anexos. A escolha é vasta: são 13, incluindo o sinistramente denominado anexo SS. Com tantas opções, não é difícil deixar escapar alguma coisa, com efeito no resultado final.

Que o diga a mulher que odiava o IRS. Não havia maneira de escapar a um pagamento suplementar, até ao dia em que resolveu mudar de atitude. Optou pela ternura e colocou na pasta das facturas uma etiqueta com um coração desenhado a vermelho – um “I love IRS”. Agora, trata os papelinhos com carinho, mantém a pasta em local nobre, conversa com ela. E não se rala com o programa informático, nem quando este exige o conhecimento prévio dos 151 artigos do Código do IRS e dos 74 do Estatuto dos Benefícios Fiscais.

E não é que funcionou? No ano passado, recebeu 500 euros de devolução. Só o amor constrói.

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