Hepatites víricas: para quando um não-problema?

As hepatites víricas são um problema de saúde pública mundial.

Quando falamos de hepatites víricas podemos interrogar-nos se este grupo de doenças justifica a criação de uma data intitulada como Dia Mundial de Luta Contra as Hepatites Víricas. Vários argumentos a favorecem.

Em primeiro lugar importa esclarecer que as hepatites víricas estão implicadas na maioria dos casos de cirrose a nível mundial e que são a segunda causa mais frequente de cirrose em Portugal, atrás da cirrose de etiologia alcoólica. Múltiplos vírus, de vários tipos, podem provocar inflamação do fígado (hepatite). Contudo, a sua agressividade é variável, alguns curam espontaneamente, outros pelo seu comportamento e probabilidade de originarem uma infecção crónica obrigam a tratamentos (que apresentam eficácias variáveis) e ainda outros são oncogénicos (aumentam o risco de cancro do fígado). Para alguns deles a prevenção é possível através de vacinas eficazes (de que são bom exemplo o vírus da hepatite A e da hepatite B). Mas quando para a população falamos de hepatites víricas, habitualmente referimo-nos a duas das mais frequentes e mais mediáticas, a hepatite B e a hepatite C.

 Estima-se que a infecção pelo vírus da hepatite B possa atingir 0,4-1% (40.000-100.000) de cidadãos portugueses e está presente em 15-20% dos doentes com cirrose hepática, estádio final das doenças do fígado cujo único tratamento curativo será o transplante. Calcula-se que esta infecção tenha ocorrido em 1/3 da população mundial e que 350 milhões tenham desenvolvido infecção crónica. A vacina constitui um grande avanço e em boa hora foi integrada no programa nacional de vacinação, o que se tem traduzido numa progressiva diminuição da incidência da doença na população portuguesa. Alem disso, hoje existem tratamentos orais, seguros e sem efeitos colaterais significativos que embora raramente curem a doença, a conseguem controlar impedindo que haja inflamação do fígado com consequente deterioração do mesmo, diminuindo simultaneamente o risco de aparecimento de cancro. Não deixam contudo de ser tratamentos crónicos, na sua maioria, implicando a ligação dos doentes a consultas regulares preferencialmente de gastrenterologia, a única especialidade que comporta uma subespecialidade de hepatologia. Apesar disso a mortalidade mundial relacionada com o vírus da hepatite B atinge cerca de 1 milhão de habitantes anualmente.

No respeitante à infecção pelo vírus da hepatite C os números são muito impressionantes. Cerca de 3% da população mundial está atingida e mais de 170 milhões de doentes estão em risco de evolução pata cirrose e cancro do fígado. Na Europa, 5-10 milhões de pessoas poderão estar atingidas enquanto em Portugal se estima que 1-1,5% da população (100-150.000) possa estar afectada. Em alguns grupos de risco, como é o caso dos utilizadores de drogas ou os hemofílicos as taxas de prevalência serão maiores, podendo atingir os 70%! Em 30-40% dos casos existe evolução para cirrose sendo nestes o risco de instalação de cancro próximo dos 40% em dez anos. A hepatite C associa-se mesmo a 25-30% dos casos de cancro do fígado a nível mundial e é a principal indicação para transplante do fígado nos EUA e na Europa. Também relevante é o facto de que actualmente, o número de pessoas que morrem em consequência da infecção por HCV é já superior ao da infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (vulgarmente conhecido por vírus da SIDA), nos EUA. Em Portugal estima-se que mais de 1000 mortes/ano sejam atribuíveis a esta infecção, constituindo-se como 20% do total de mortes por cirrose hepática e 50% do total de mortes por cancro do fígado. Em face desde números perturbadores, a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia vem recomendando que pelo menos uma vez na vida se faça uma simples analise sanguínea que permite o rastreio da infecção, que apesar de ter hoje um tratamento curativo na maior parte dos casos, evolui silenciosamente e não é diagnosticada atempadamente na maioria das vezes, deixando sequelas graves e limitativas, muitas vezes colocando em risco a vida.

As hepatites víricas são pois um problema de saúde pública mundial, só possível de ser combatido com um conjunto de vectores associados que passam pela informação e sensibilização geral das populações, dos médicos de família, e de uma coordenada e eficaz resposta dos médicos especialistas em gastrenterologia e hepatologia dispersos pelos diferentes hospitais, contando com um imprescindível empenhamento das instâncias estatais e governamentais. Só desta forma, daqui por uns anos, as hepatites víricas poderão ser um não problema!

Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia

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