Hepatite C afecta menos 100 mil pessoas do que se pensava

"No máximo haverá 50 mil, não 150 mil pessoas com hepatite C em Portugal, como tem sido dito", garante o director do instituto de saúde pública do Porto que fez um estudo populacional de prevalência da infecção. Ministro diz que preço de novo medicamento é "imoral"

Afinal, em Portugal não haverá tantas pessoas com hepatite C como tem vindo a ser afirmado. Os infectados serão, no máximo, cerca de um terço do que tem sido estimado. Pelo menos é nesse sentido que apontam as os primeiros dados de base populacional sobre a prevalência da hepatite C em Portugal que esta segunda-feira foram divulgados no Porto. “No máximo haverá 50 mil pessoas com hepatite C e não 150 mil como tem sido dito”, sustenta o director do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), Henrique Barros, que estima que o valor real deverá até ser mais baixo, “entre 3 a 4 casos por mil [pessoas]”.

Até à data em Portugal apenas existiam estudos parcelares efectuados em populações de risco, como homens que fazem sexo com homens  e utilizadores de drogas, além de dados sobre os dadores de sangue. Mas nunca se tinha feito um estudo numa amostra aleatória da população, frisou Henrique Barros.

Constituída por 1017 pessoas que vivem no Grande Porto e têm entre 15 e 64 anos, a amostra não é representativa da população nacional,  mas o especialista, que pretende obter financiamento para um estudo de dimensão nacional (com cerca de 10 mil pessoas), acredita que os resultados que encontrará com uma amostra maior não serão muito diferentes. Este estudo permitiu encontrar apenas duas pessoas com hepatite C. Uma sabia que estava infectada, enquanto a outra não. "É uma prevalência de 0,2%" o que, extrapolando para o resto do país, daria 14 mil casos a nível nacional, acentua o médico e professor catedrático.

Assumindo que a prevalência da hepatite C em utilizadores de drogas injectáveis (que se estima em cerca de 35 mil) é muito elevada (mais de 70%), chegar-se-ia a uma prevalência gobal, no máximo, "de 50 mil infectados", calcula. Os números, avisa Henrique Barros, "não são definitivos, mas seguramente são muito mais baixos do que o tem circulado", além de que "batem certo" com os obtidos em França – onde existem cerca de 220 mil infectados para uma população seis vezes maior do que a portuguesa. No Reino Unido a situação é semelhante, acrescenta.

Este resultado prova, segundo Henrique Barros,  que "não faz sentido efectuar rastreios gerais" sistemáticos na população portuguesa. O perito acredita mesmo que os dados do estudo do ISPUP correspondem a uma “estimativa muito boa da carga da doença” em Portugal e que há "uma sobrestimativa da importância da infecção" no país. Agora, há dois grupos populacionais que, defende, deveriam merecem "uma atenção especial": as pessoas que receberam transfusões de sangue antes de 1991 e a população que utiliza drogas injectáveis. 

Os dados do ISPUP foram divulgados no dia mundial das hepatites (além da C, há a A, a B, a D e a E),  mas os holofotes têm estado focados, nos últimos tempos, apenas no primeiro tipo da infecção. Razão? Além da heptatite C, tal como a B, para a qual há uma vacina, serem as mais preocupantes, por poderem evoluir para cancro no fígado, desde há meses há um novo medicamento disponível que permite erradicar o vírus em mais de 90% dos casos. Este fármaco já está aprovado, mas continua por comparticipar em Portugal devido ao seu preço muito elevado. O sofosbuvir, do laboratório norte-americano Gilead Sciences, custa 42 mil euros (tratamento de 12 semanas), um preço que o Ministério da Saúde português está empenhado em tentar baixar, tendo-se já aliado a vários países europeus para presssionar o laboratório nesse sentido.

Esta segunda-feira, questionado pelos jornalistas, o ministro da Saúde classificou mesmo como "totalmente imoral" o preço pedido pela indústria farmacêutica. “O Infarmed está a autorizar tudo o que são casos de ‘life saving’ [para salvar vidas]. E o que queremos é ter uma estratégia concertada com outros países que também não aprovaram o medicamento e que são a maioria. Para tentar baixar [o preço], porque obviamente o preço é totalmente imoral”, afirmou o ministro Paulo Macedo, citado pela agência Lusa.

O ministro insistiu na ideia de uma estratégia concertada de vários países europeus. Sublinhando que Portugal quer, “de certeza, aceder à inovação”, disse que apenas o fará com preços que tornem possível a sua comparticipação. Citou, a propósito, o exemplo de outro medicamento para a hepatite C que já desceu cerca de 60% o seu preço face à proposta inicial dos laboratórios.

Enquanto não há acordo para a comparticipação, o que resta aos doentes portugueses é conseguir aceder  à nova terapêutica através de pedidos de autorização de utilização especial (AUE) feitos pelos hospitais onde estão a ser tratados. O problema é que, a crer naquilo que afirmam vários médicos e responsáveis da associação de doentes SOS hepatites (ver caixa), o acesso está a ser dificultado e poucos pacientes conseguiram, até à data, ser tratados com o fármaco.

“Há situações graves e muitos graves e essas estão a ser estudadas e avaliadas caso a caso. Em determinadas situações, tem sido disponibilizada a terapêutica mais cara. Mas são casos pontuais”, disse à Rádio Renascença Leopoldo Matos, presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, que acrescentou que um levantamento recente aponta para 700 doentes com urgência de ser tratados com alguma brevidade.

À semelhança do ministro da Saúde,  Henrique Barros considera que o preço pedido pelo laboratório norte-americano não se justifica. É  “absolutamente absurdo”, proclama. “Está a criar-se um excessivo alarmismo para se justificar este preço absurdo”, afirma o especialista que sugere que o Governo português "deveria obrigar à quebra da patente” desta terapêutica, estratégia possível quando se está perante “um problema grave de saúde pública”. Nos EUA a terapêutica custa 84 mil dólares (12 semanas), o que dá um custo de mil dólares por pílula, refere, a propósito, o Financial Times. Entretanto, o laboratório vendeu o mesmo tratamento pelo preço de 900 dólares ao Egipto, um país onde a taxa de prevalência de hepatite C é elevadíssima (cerca de 12% da população está infectada), porque os responsáveis sanitários do país fizeram um acordo para o tratamento por cinco anos.

Henrique Barros estabelece um paralelo com a primeira vacina da hepatite B, lançada em 1987 ao preço de “15 contos” (75 euros) numa altura em que “a Organização Mundial de Saúde já a fazia chegar ao sudoeste asiático a um dólar por dose”. "Está a gerar-se um ruído de fundo que é nocivo para os doentes", sustentou também no ISPUP Helena Pessegueiro, do Centro Hospitalar do Porto, lembrando que existem alternativas ao novo medicamento, algumas das quais têm uma eficácia da ordem dos 80%.

Em todo o mundo, os números são preocupantes. Peritos da Organização Mundial da Saúde citados pela agência AFP afirmaram na semana passada em Genebra que a hepatite é uma doença que mata quase tanto quanto a sida actualmente, quase 1,4 milhões de pessoas em cada ano. Deste total, 90% tinham  hepatite B e C, que são responsáveis por dois terços de cancros de fígado no mundo.

"A melhor forma de prevenção contra o cancro de fígado ou contra as cirroses hepáticas é a prevenção e o tratamento da hepatite viral", declarou o professor Samuel So, cirurgião e professor da Universidade de Stanford, na Califórnia. Ao lado de especialistas da OMS, Samuel So defendeu então um reforço dos testes que detectam a doença, uma vez que se estima em 500 milhões o número de pessoas portadoras do vírus.

Relativamente às outras hepatites, calcula-se que, na B, 2% da população portuguesa esteja cronicamente infectada, mas a situação está controlada em Portugal, graças à vacina, segundo Henrique Barros. Na hepatite A, muito ligada às condições sanitárias, há também uma vacina. Quanto à D e à E, essas não constituem grande problema em Portugal.


Duzentos doentes precisam do novo medicamento, diz associação

 

O número aumenta de dia para dia. Actualmente são cerca de 200 os doentes com hepatite C em Portugal que não têm alternativa e necessitam da nova terapêutica, afirma Emília Rodrigues, presidente da associação SOS Hepatites. São “casos extremos”, doentes que já usaram as outras terapêuticas, sem resultado, e a quem agora só resta o novo medicamento ou o transplante de fígado (que tem lista de espera), frisa.  

Notando que não se sabe quantos são os infectados em Portugal, Emília Rodrigues diz que se tem falado num número de “entre 120 a 150 mil, porque são dados da Organização Mundial de Saúde [OMS]”. A maior parte não sabe que está infectada, esta é uma doença sem sintomas, de tal forma que a OMS já a declarou como “assassina silenciosa”.

Por isso, Emília Rodrigues recomenda às pessoas que vão ao médico de família e peçam para fazer o rastreio da hepatite C e da B, as duas mais perigosas.

Culpando o Governo pela falta de acesso à nova medicação que “deixa doentes entre a vida e a morte”, diz que, até à data, “só oito ou nove tiveram acesso ao novo fármaco, através da autorização de utilização especial”.

Questionada sobre o preço, responde que a associação “não faz pressão junto do laboratório”. “Não é o nosso papel”, justifica.

 

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