Professora foi forçada a dar aulas em estado terminal. Filha recebe indemnização de 20 mil euros

Juíza que analisou o caso não hesitou em classificar o sucedido como um desrespeito pela dignidade humana. Manuela Estanqueiro morreu poucos dias depois de CGA emendar a mão, após ter leccionado em sofrimento.

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A CGA negou a reforma à professora até poucos dias antes de ela morrer Claudia Andrade/Arquivo

O caso chocou o país inteiro, incluindo o então primeiro-ministro José Sócrates. A padecer de uma leucemia aguda, Manuela Estanqueiro, uma professora de 63 anos, viu a Caixa Geral de Aposentações negar-lhe a reforma duas vezes. A instituição só emendou a mão escassos dias antes de a docente morrer, em 2007, depois de a ter forçado a dar aulas em grande sofrimento.

No mês passado, o Supremo Tribunal Administrativo condenou definitivamente a Caixa Geral de Aposentações (CGA) a entregar 20 mil euros à filha de Manuela Estanqueiro, uma indemnização a que a instituição tentou furtar-se usando todos os meios legais ao seu alcance – tendo inclusivamente invocado a sua situação financeira deficitária. Este, como outros argumentos, não comoveram, porém, os juízes, para quem a situação que atravessa o país não pode servir de pretexto para esvaziar o direito à compensação financeira pela situação a que Manuela Estanqueiro foi sujeita. Contactada pelo PÚBLICO, a CGA remeteu esclarecimentos sobre este caso para o Ministério das Finanças, que não os prestou.

Com mais de 30 anos de serviço, a professora de Cacia, Aveiro, já tinha sido submetida a quimioterapia quando foi presente a uma junta médica. Os clínicos que a observaram acharam-na permanentemente incapaz de voltar a trabalhar, mas o médico que os chefiava – e que nunca viu a doente – decidiu contrariar o seu parecer, recusando a aposentação. Para isso, baseou-se num relatório dos Hospitais da Universidade de Coimbra anterior à ida de Manuela Estanqueiro à junta médica. Dizia o documento que a leucemia se encontrava “em remissão”. Mas acrescentava também que a docente havia “chegado ao limite das suas capacidades para lidar com crianças” e com problemas relacionados com elas. Para não perder o salário e correr o risco de ser despedida por faltas injustificadas, a professora de Educação Tecnológica voltou à Escola Básica 2/3 de Cacia. Era a filha, na altura com uma gravidez de risco, quem tinha de a levar e ir buscar. Os colegas improvisaram-lhe uma cama com os sofás da sala dos professores, de modo a poder descansar entre as aulas, que nem sempre conseguia dar. Mesmo furando os regulamentos, houve docentes que a substituíram na sala de aula. “Regularmente tinha de ser alimentada pela filha ou pelos colegas quando se encontrava a leccionar, pois não conseguia fazê-lo sozinha”, descrevem duas sentenças de tribunal. Havia dias em que o prato ia para trás como tinha vindo.

O calvário durou um mês, ao longo do qual Manuela Estanqueiro voltou a precisar de cuidados hospitalares. Foi nesta altura que o caso saltou para os jornais e para as televisões, juntamente com outro, de contornos similares, de um docente de Braga com cancro na laringe que mal conseguia falar mas a quem também havia sido recusada a passagem à reforma. Sócrates declarou-se chocado, ao ponto de decretar uma auditoria às juntas médicas da CGA. Foi também por causa de Manuela Estanqueiro que as juntas médicas passaram, a partir daí, a ser compostas exclusivamente por clínicos.

Pela voz do hoje ministro da Segurança Social, Pedro Mota Soares, o grupo parlamentar do CDS exigiu explicações para tão “atroz desumanidade”. Foi na sequência do escândalo público – e já depois de ter negado a aposentação à professora por duas vezes – que a CGA lhe concedeu finalmente a reforma, numa altura em que estava outra vez internada no Hospital de Aveiro para não mais sair.

A juíza que analisou o caso no Tribunal Central Administrativo Norte – para o qual recorreu a CGA depois de condenada em primeira instância – não hesitou em classificar o sucedido como um desrespeito pela dignidade humana. “O período de tempo durante o qual se viu obrigada a trabalhar foi extremamente penoso e quase indigno da condição humana e de professora”, escreveu na sentença. “Como se não lhe bastasse a doença”, acrescenta a magistrada, chamando a atenção para o inútil sofrimento acrescido que a atitude negligente da CGA provocou. Por isso, não acedeu ao pedido do Ministério Público para baixar a indemnização para cinco mil euros. “A minha mãe vivia na angústia desta injustiça que lhe estavam a fazer”, recorda a filha, também professora, que pediu em tribunal uma indemnização de 300 mil euros. O advogado do Sindicato de Professores da Zona Centro que a representou em tribunal admite vir a apresentar uma queixa contra o Estado português nas instâncias europeias, como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

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