Fogos visíveis

O “combate” passou a ser o único pensamento único (inclusive político, claro) que, praticamente, tem incidido sobre os incêndios.

Incêndios: Arouca, Águeda, Gondomar, Barcelos, Ponte de Lima, Arcos de Valdevez, Nelas, Viseu, Leiria, Algarve, Funchal... Em maior ou menor grau, todos os anos os mesmos infernos humanos, sociais, económicos.

Um problema que é (e assim deveria ser considerado) essencialmente social (nas suas consequências, claro, mas também nas suas causas e nas respectivas respostas preventivas e protectoras), técnico (mormente, do ponto de vista agrícola e florestal) e politico (quanto a inerentes decisões governamentais e autárquicas). Mas que foi transformado num problema predominantemente "militar", policial, administrativo.

Uma problema que deveria merecer da comunicação social um enfoque, isso mesmo, eminentemente social. Mas, a objectiva e suficiente análise, reflexão, pedagogia para tal requerida foram substituídas por um enfoque numa mediático-sensacionalista, em que o fomento da histeria é inversamente proporcional ao valor acrescentado em pedagogia.

Um problema em que os valores económicos em causa, (designadamente, o potencial económico directo e indirecto da floresta e associadamente, da agricultura) estão a ser destruídos pelas consequências economicamente arrasadoras dos incêndios e perversamente subvertidos pelos interesses que cercam toda a indústria e comércio (e intermediários, mais ou menos formais ou informais...) da crescente e custosíssima parafernália (viaturas, meios aéreos, combustíveis, equipamentos, etc) de meios (sempre escassos, é o que ouvimos das populações e autarcas dos locais afectados) mobilizados ou potencialmente mobilizáveis para o "combate" aos incêndios florestais.

Aliás, neste domínio dos incêndios, o que é que, agora, é ou não é (só) “florestal”? Com cada vez mais urbanização (aglomerada ou dispersa) e, ao mesmo tempo, arborização e ou arbustização a esmo e não ordenada e regulada, o que é que é ou (e) não é “só” “florestal” ou “só” “urbano”?

O “combate” passou a ser o único pensamento único (inclusive político, claro) que, praticamente, tem incidido sobre os incêndios.

E dai, do exclusivo paradigma do "combate", a lógica e infraestrutura “militar” que prepondera neste domínio da protecção civil (e até o "civil" aqui parece muito paradoxal, não obstante  o quanto o conceito tem dignidade constitucional).

Quando saímos a sério, de facto (e não apenas por retórica), do paradigma do “combate” como fulcral (o que não significa que não se lhe reconheça a importância de um recurso excepcional) e enraizamos como regra  (também) nesta matéria, o paradigma da prevenção?

Isso é possível, inclusive, não apenas pelo maior valor que deve passar a ser dado a organização e planeamento e envolvimento da sociedade (e coerentes medidas políticas) efectivamente consequentes (e não apenas discursivos ou em “letra-morta”) mas, também, pelo redireccionamento e ou reconversão de meios humanos, materiais e financeiros agora exclusivamente adstritos ao “combate”.

Talvez este texto seja, no momento, impertinente, porque, dada a dimensão catastrófica do que no aí temos presente, agora, já, é preciso sobretudo agir, mais do que pensar.

Contudo, também o que (mais uma vez) aconteceu este ano deve levar a que, não apenas por parte de quem “de direito” (e de poder) mas (mais) socialmente, se reflicta consequentemente o problema dos “incêndios florestais” como um problema estrutural. E não como um problema “apenas” conjuntural, que, activamente, visivelmente, “só” acontece de vez em quando, de Verão a Verão, parecendo não se perceber que está (potencialmente) todos os dias (pelo que se faz, não se faz ou se desfaz), passivamente, invisivelmente, a “acontecer”.

Foi justamente sobre isto, sobre o quanto, invisível, se faz de errado, não se faz ou se deixa de fazer durante todo o ano como causa do que, como neste Verão, é visível nos chocantes incêndios florestais que por aí perversamente nos ofuscam (e matam) quase todos os Verões, que, no ano passado, por esta altura (25/8/2015), escrevi um artigo no PÚBLICO com o título “Fogos invisíveis”.

Apesar de suavizado pela ironia (ajude-me a inspiração, já que, infelizmente, factos não faltam para escrever algo mais directo e corrosivo…), julgo que esse artigo continua actual.

Esperemos que não mas, por estranho que pareça ser o autor a escrever isto, temo que esse artigo do ano passado e este mesmo se mantenham actuais por muitos anos.

Inspector do trabalho aposentado e dirigente de uma associação de bombeiros voluntários

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