Fernando passou 720 horas em 11 aeroportos e juntou 15 mil euros para ajudar crianças doentes

The Amélia Project tem um avião disponível para aterrar em zonas remotas. Esta terça-feira, vai angariar fundos num concerto solidário no Teatro da Trindade, em Lisboa.

Foto
Cortes podem vir a piorar tratamento do cancro em Portugal Paulo Pimenta

No início de Março, Fernando Pinho, programador cultural e encenador natural de São João da Madeira, a viver em Londres desde 2007, saiu de casa com uma mala de mão e o tablet para passar 60 dias em 60 aeroportos.

A sua missão era dar a conhecer ao mundo The Amélia Project, Organização Não Governamental que criou para oferecer voos a médicos, enfermeiros e voluntários que ajudem crianças e pessoas carenciadas de regiões fustigadas por doenças. O seu corpo aguentou um mês em 11 aeroportos. Dormiu no chão, em bancos de metal, sentado em sanitas, numa capela. Regressou a Londres a conselho médico, mas não baixou os braços e continua a angariar fundos. Esta terça-feira, Sofia Escobar e Nuno Feist juntam-se num concerto solidário no Teatro da Trindade, em Lisboa, às 21h30. A entrada custa 13,5 euros e a totalidade da receita será canalizada para o transporte de médicos para Myanmar para ajudar crianças e dar formação a médicos locais.

“Os casos são chocantes: crianças que apenas recebem paracetamol como tratamento para o cancro, pais que são responsáveis por angariar fundos para pagar exames, alimentação e medicamentos de filhos que estão internados em hospitais públicos”, refere Fernando Pinho. Esta é uma das missões que o projecto quer concretizar este ano. O Pilatus PC-12, o avião que consegue aterrar em pistas de terra batida, está no aeroporto de Bournemouth, a 90 minutos a sul de Londres, preparado para voar para locais remotos. “A diversidade de pedidos é tão grande que, em alguns casos, vamos recorrer adicionalmente a voos comerciais e a um aparelho mais pequeno exclusivamente para voos na Europa”, revela. Os planos alteram-se conforme as necessidades. Os pedidos de ajuda não chegam apenas de organizações oficiais, há também abordagens directas de famílias. The Amélia Project vai também ajudar instituições que realizam sonhos de crianças com doenças terminais. “Ao oferecer transporte aéreo, muitas vezes ao local dos seus sonhos ou para visitar família que vive noutros países, estamos a ajudar a criarem memórias importantes, independentemente do que o futuro lhes traga. Ao remover o peso financeiro e ao permitir uma pausa, longe das rotinas dos tratamentos oncológicos, o The Amélia Project oferece a estes doentes algo que lhes permita manterem-se optimistas perante o futuro”.

Mais de dois meses no terreno e 15 mil euros angariados até agora, 10 mil dos quais doados por gente do Reino Unido. Portugal é o segundo país mais generoso, com 122 contribuições e cerca de 2600 euros. O projecto recebeu donativos de Angola, Espanha, Suíça, Dinamarca, Irlanda, Bélgica, Macau, Holanda, entre outros países. O objectivo de atingir, durante os 60 dias, cerca de 44 mil euros não foi alcançado. Contudo, o projecto continua e os donativos podem ser feitos online. Quem contribuir, terá o seu nome pintado no exterior do avião, pode ajudar a preparar as missões e viajar com a equipa. Há, no entanto, vontade de reduzir, a médio prazo, a dependência de donativos através da criação de serviços a disponibilizar à população, cujos lucros sustentariam as missões.

“As luzes nunca se apagam”
Fernando Pinho baptizou o projecto com o nome da filha Amélia de quase dois anos e preparou-se para a missão. “As regras do desafio eram claras: todos os dias tinha um objectivo de angariação de fundos para atingir. Uma vez alcançado, o público escolhia o próximo aeroporto para onde eu iria no dia seguinte. Durante o desafio, não podia sair dos aeroportos, forçando-me a dormir dentro dos terminais”. O público acompanhava-o no site, no Facebook e no Twitter. Fernando ia partilhando textos e vídeos. Os 60 dias encolheram para 30 devido a um colapso físico depois de 11 aeroportos. “Este desafio foi como sair um dia para ir trabalhar, trabalhar 720 horas contínuas e só depois regressar a casa”, diz. Uma experiência que o fez olhar para problemas sociais e humanitários de outra forma. Recebeu pedidos de ajuda, emails de pais de crianças com cancro, contactos de várias organizações que apoiam doentes e pessoas carenciadas.

A aventura começou em Gatwick em direcção ao Porto, onde recebeu a visita da família e de amigos e percebeu que não iria ser fácil pregar olho. Viajou para Lisboa onde esteve quatro dias. “Amigos, jornalistas e estranhos abordaram-me, transformaram o aeroporto no meu escritório. No final dessa semana, tinha dormido um total de 10 horas em seis noites e tomado um único duche, que me custou 15 euros”, recorda. Em Barajas, Madrid, encontrou uma rede de pedintes que se faziam passar por passageiros em apuros. Era proibido pernoitar no aeroporto, escondeu-se nas casas de banho, foi apanhado. “A minha salvação em Madrid foi a capela do aeroporto, onde consegui dormir três horas”. Em Barcelona, foi expulso do terminal e readmitido depois de explicar o seu projecto. Nessa altura, já tinha percebido que os aeroportos quase não param. “O fluxo de passageiros reduz drasticamente à meia-noite, mas a essa hora surge um exército de funcionários de limpeza que utilizam máquinas industriais. O barulho nunca desaparece, as luzes nunca se apagam. Às quatro da manhã, é hora de ponta nos aeroportos com a chegada de milhares de passageiros para os primeiros voos do dia”.

Em Bordéus, o corpo começou a ceder. O lado esquerdo da cara duplicou de tamanho com uma infecção nas gengivas. Mesmo assim, seguiu viagem para Amesterdão onde, à uma da manhã, o aeroporto fecha para não portadores de bilhete. Descansou num parque de estacionamento adjacente ao terminal com dois emigrantes ucranianos e outros cinco ilegais do norte de África. A infecção não lhe deu sossego, foi assistido por um médico e levado para o hospital. Em Munique, começou a perder o controlo do corpo, desmaiou, foi assistido na clínica do aeroporto e aconselhado a parar. Decidiu continuar, viajou para Milão, até que cedeu ao conselho do seu médico para voltar a Londres e fazer exames médicos. “Parar foi uma decisão difícil, mas a decisão acertada. Foram, no entanto, esses 30 dias que deram a conhecer o projecto a milhares de pessoas. Recebemos mais de 230 donativos e dezenas de cartas, emails, mensagens de apoio e pedidos de ajuda”. O futuro do projecto nunca esteve em risco. “Na realidade, depois do 60 dias 60 aeroportos, a sua importância foi reforçada. Ainda hoje, recebemos semanalmente novos pedidos de apoio”. Apesar do degaste físico, voltaria a dar o corpo ao manifesto. Estará em Lisboa até amanhã e garante que vai dormir no aeroporto.

Sugerir correcção
Comentar