Felicidade Pública (10): O carinho anónimo ou o rejuvenescimento escrupuloso da teia social

No regresso de uma viagem a Amsterdão, o primeiro impacto de um voo já atrasado 180 minutos não fazia prever o que se seguiria. Horas de fila, faltas de esclarecimentos, alternativas frágeis e não compensatórias, que acabaram num atraso de 26 horas na chegada a Lisboa, fizeram despontar bondade e leveza nas mais de cem pessoas de muitos países que esperavam.

Partilhámos alimentos e bebidas, números de telefone e soluções, risos e histórias pessoais, e houve até quem dançasse e cantasse o Vira em pleno aeroporto pela noite dentro, após horas de expectativa em frente ao escritório da transportadora nacional, e antes de sermos despejados em manada para uma noite efémera num hotel de desterros.

Fizeram-se massagens aos mais idosos, teve-se paciência com as crianças. Não fomos submissos, mas também não fomos criaturas de violência. E sem saber nem importar a nacionalidade ou idade de cada um, fizemos comunidade. Ali, sentiu-se que a humanidade tem capacidade suficiente para rejuvenescer a teia social nas mais importunas circunstâncias. Ali estivemos solidários, generosos, justos, disponíveis, bem-humorados, mesmo perante tão incomodativa, imprevista e desesperante espera. Ali, e apesar da frágil transitoriedade das relações, a boa fé no outro, tão avessa e escandalosamente ausente na rotineira vida do dia a dia, tornou-se palpável.

Esta intersubjectividade, esta ressonância positiva, esta sincronicidade boa, estes nutrientes de vida, que se elevavam para além das línguas faladas e das vidas próprias e tão desiguais, desafinavam com o que tínhamos ouvido sobre Portugal e os países do sul da Europa nos dias anteriores, aquando do 7.º Congresso Europeu de Psicologia Positiva, pela voz inquietante de investigadores internacionais.

Quando perante uma audiência de 50 países o economista canadense John Helliwell analisou os dados mais recentes do World Happiness Report, as sombras sobre Portugal ficaram alongadas. Não apenas nem só pelo peso dos erros políticos e financeiros, mas pelos danos morais e relacionais que nós todos, demissionários de uma responsabilidade comum, nos infligimos.

Demonstrado de forma inequívoca que os resultados de Portugal, Grécia, Espanha e Itália estavam abaixo do previsto, mesmo depois do modelo matemático ter descontado o impacto dos golpes financeiros na felicidade dos cidadãos,  verificou-se que, em contraponto, os da Irlanda e da Islândia estavam acima do prognosticado. A explicação foi certeira ao coração da vida coletiva na forma diferenciada de resposta à crise: a falta de coesão e sentido de comunidade nos primeiros e a capacidade dos segundos em se organizarem em conjunto em redor de soluções. Ter com quem contar em caso de dificuldade é algo comum e presente nos países que conseguiram saídas harmoniosas para a crise. A qualidade da vida conjunta – confiar no outro, vê-lo como um aliado, pondo de lado categorias e separações ideológicas de todo o tipo, promovendo pontes e aproximações  facilitou e difundiu o bem-estar neste dois países, perante o holiganismo económico e político.

Dolorosamente, os laços invisíveis – financeiramente não considerados –, a expectativa boa do reencontro com o outro, o protagonizar da generosidade, a esperança confiante na colega, no parceiro, esvaíram-se em Portugal e nos outros três países do sul da Europa, perante uma economia excludente, e enrolados nas intermináveis e previsíveis discussões críticas, problematizadoras  e antagonizadoras em que somos tão bons. Virámos predadores uns dos outros, e contrapusemos os sucessos e as lutas pessoais e de grupos identitários ao espaço da vida em comunidade. Quisemos ser gloriosos nos nossos próprios altares individuais. Não fomos capazes de trabalhar coletivamente face à insolência dos donos do mundo, nem desmembrar a arrogância intelectual ou messiânica. Tratamos com soberba a ideia de que somos um conjunto, cooperantes e coesos, alimentados pela quimera da solidariedade nacional.

Parece agora, mostram estes dados,  que essa crença é uma ilusão. A ausência de algo tão escassamente cultivado como a responsabilidade publica pelos outros, e de algo infinitamente tão urgente como o exercício escrupuloso da cidadania temerária e corajosa, provocaram a indigestão social, e são hoje a moldura do retrato atual da nossa atitude servil e passiva, autoindulgente, face ao poder. Desdenhamo-nos uns aos outros, de debate em debate, de descrença em descrença, e deixámos toldar-nos pela pavorosa majestade da noite obscura. Sós, a noite é infinita.

Preocuparmo-nos com as mentes pérfidas e os poderes ocultos ou visíveis que prevaricam nos terreiros do que é publico é essencial, vital mesmo, mas nunca em desdém de reservarmos tempo e determinação ao ato de cuidar, dar voz e espaço, e educar, este apoio humano infinito de conexões e dependências reciprocas que nos eleva – este carinho anónimo que nos ajuda a transcender os grandes e pequenos horrores da existência conjunta. Sem interdependência somos nada; sem mutualidade não há humanidade.

A democracia foi feita por gentes que iam ao mercado, se sentavam nas praças públicas a debater ideias e caminhavam pelas ruas. Se nos preocupamos vivamente com o desfecho desta democracia que hoje incorporamos, se temos receio da potencial morte do sonho inicial – de que somos corresponsáveis – então façamos por colocar seriamente a cidadania emocionada e ecoante no centro da ação política, educativa, comunitária, organizacional, pessoal.

De braços esticados uns para os outros, de abraço em abraço, de conversa em conversa, de escuta em escuta, teceremos o dom da rede e o entusiasmo da grandeza cívica coletiva, e assim consolidaremos os valores sublimes da modernidade.

Não percamos o afecto social que nos fecunda; essa perda seria, já é, a mais gravosa bancarrota e a mais perigosa devassidão.

Por onde andamos, as nossas figuras multiplicam-se, nas filas dos supermercados, nos traços intermitentes das estradas, nas entradas das escolas, nos refeitórios das empresas. Aí, onde estivermos, que nunca nos habituemos à pobreza da solidão e nunca nos deixemos apartar e dividir pelos lobos atacantes que convidam ao desespero e ao medo; aí, deixemos definitivamente de estar como turistas e voltemos a estar como cidadãos em estado puro.

Helena Marujo é professora universitária no ISCSP/UL. A autora escreve ao abrigo do acordo ortográfico.

Para saber mais: Helliweel, J. Layard, R., & Sachs, J., (Ed.s) (2013). World Happiness Report 2013

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