Fechados em casa, mas expostos ao mundo

Os que nasceram desde 1995 têm uma existência de paradoxos, são os mais protegidos e os mais vulneráveis, são aqueles por quem não se dá nada e de quem se espera tudo. Este é o quarto de cinco textos sobre as diferentes gerações.

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Simão, de 11 anos, e Lucas, de 9 anos, vivem entre a casa da mãe e do padrasto e a casa do pai, da madrasta e da meia-irmã Paulo Pimenta

André Agante divertiu-se muito este Verão com os primos e amigos. Passaram horas na piscina, fizeram pizza, jogaram ao toca-e-foge, soltaram as galinhas e correram atrás delas. “Anteontem, eram dez a brincar”, diz ele. É grande a casa dos avós nos arredores de Aveiro. Quando a mãe era menina, também ali recebia primos e amigos. Nas férias, havia pelo menos três crianças a saltar de um lado para outro e ninguém colocou cancelas de segurança nos quatro lances de escadas. Quando André nasceu, cancelas nas escadas, protectores nas tomadas.

Nunca houve tanta preocupação com a segurança infantil. Há até pais que põem capacetes de esponja aos filhos antes de os soltarem dentro de casa. “Até que ponto este excesso não está a criar miúdos menos autónomos?”, pergunta a mãe de André, Catarina Ribeiro, co-fundadora da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Criança Abusada e Negligenciada. Quando André entrou no pré-escolar, aos três anos, queixavam-se os educadores que alguns nunca tinham subido escadas.

Ninguém conhece infância tão protegida como os que nasceram no final do século passado ou já neste – a chamada geração Z ou geração digital. E, no entanto, nunca houve tanta percepção de vulnerabilidade. Parafraseando um texto que o sociólogo Manuel Sarmento co-assina com Natália Fernandes e Catarina Tomás, essa é uma das muitas contradições de um país que pode orgulhar-se de ter uma das mais baixas taxas de mortalidade infantil e um dos mais elevados níveis de segurança urbana do mundo e ainda leva puxões de orelhas pelo maltrato intrafamiliar e pelo abandono escolar.

É recente o reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos. A Convenção dos Direitos da Criança, adoptada pelas Nações Unidas em 1989, foi ratificada por Portugal em 1990. Em 2001, num apelo à participação da comunidade, o país começou a criar comissões de promoção e protecção de crianças e jovens. Um ano depois, ficava perplexo com uma reportagem do semanário Expresso sobre abusos sexuais de rapazes à guarda da Casa Pia de Lisboa. 

Foi notícia até à náusea o processo Casa Pia. Era, interpreta Manuel Sarmento, o país a confrontar-se com a infância como tragédia, com a criança como vítima de uma sociedade que a desrespeita, que não a protege. Nada daquilo encaixava no ideal de criatura bela, inocente e espontânea que se propagava – o imaginário do “bom selvagem” herdado de Jean-Jacques Rousseau. Chocado, parte do país precipitava-se para uma preocupação nalguns casos excessiva.

Nenhuma geração cresceu tanto entre portas. Com a rua elevada à categoria de território predatório, isto é, a espaço onde qualquer estranho pode pôr a criança em risco, muitos pais tratam de enquadrar todas as horas dos filhos. As consolas, os leitores de DVD, os MP3, os computadores, os tablets e os telemóveis são os seus grandes aliados. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), 98% dos menores de 15 anos já usava computador, 93% possuía telemóvel e 95% acedia à Internet em 2012. Mas através da Internet a criança enfrenta outros riscos.

André Agante conta nove anos. Tem regras claras para usar a Net: não pode fornecer dados pessoais, revelar as palavras-passe, conversar com desconhecidos. Pode usar o computador que está no escritório ou o IPhone ou o IPad dos pais. E anda a construir uma cidade de dragões, já constituiu uma equipa de futebol e criou uma página no Facebook em nome da sua tartaruga.

“É importante que as crianças corram riscos num ambiente protegido para se poderem desenvolver de forma autónoma”, sustenta Catarina Ribeiro, psicóloga, perita do Instituto Nacional de Medicina Legal. “Crianças superprotegidas ficam muito mais ansiosas perante a adversidade. A adversidade pode ser pôr os pés na areia, mexer num animal ou apanhar chuva na cara.”

A percentagem de crianças na população residente está a cair, de modo consistente, desde o início da década de 1980 – entre 1981 e 2011 o país “perdeu” 936 mil crianças, segundo o INE. A democratização e a europeização impulsionaram transformações profundas. Há mais crianças a nascer fora do casamento ou a crescer numa família monoparental, recomposta, multiétnica ou de orientação sexual diversa. Nunca houve tantos filhos únicos. De acordo com o INE, 45,6% das crianças vivem em famílias sem outras crianças.

A sociedade valoriza mais as crianças, mas as pessoas estão cada vez menos dispostas a tê-las. Será uma característica típica do que o sociólogo alemão Ulrich Beck chama modernidade reflexiva. Se as relações de “curto prazo” são o paradigma, uma criança é um investimento a “longo prazo”. E isso pode ser visto como um estorvo, mas também como a derradeira possibilidade de estabelecer um laço eterno, uma certa forma de recuperar o “encanto com o mundo”.

Nenhum dos primos com que André se diverte em casa dos avós é de primeiro grau. É o único filho e o único neto. Não é daquelas crianças tiranas que o psicólogo espanhol Javier Urra descreve como desobedientes, desafiadoras, ávidas de atenção, capazes de dar ordens aos pais. É uma criança meiga e generosa. Os pais incitam-no a receber amigos e a partilhar o que é seu e ele partilha até o dinheiro que recebe no Natal e no aniversário. Chegado o Verão, a mãe pergunta-lhe quanto destinará às crianças pobres e ele faz um donativo para uma colónia de férias.

Professora da Universidade Católica do Porto e especialista em mediação familiar, Catarina vê muita gente viver em função dos filhos. “É importante que as crianças percebam que os pais têm direito a momentos em que elas não sejam o centro das atenções. Uma criança para crescer bem tem de ser sujeita a frustrações. Não a podemos proteger de tudo. Parte-se um brinquedo, chorou, não é preciso comprar outro a correr. Isso é pulsão compensatória. Os pais sentem culpa por estarem pouco presentes.”

Apesar de os homens participarem cada vez mais, a educação ainda assoberba mais as mulheres. E elas suportam uma das mais longas jornadas de trabalho e um dos mais baixos níveis salariais da União Europeia. Só em 2009 foi consagrada a universalidade da educação pré-escolar a partir dos cinco anos e alargada a escolaridade obrigatória até aos 18. Os equipamentos de apoio à família, diagnostica Manuel Sarmento, continuam insuficientes e as prestações sociais baixas.

“A sociedade não está organizada para os pais de hoje, que têm de aceitar todas as propostas de trabalho que aparecem”, entende a actriz, encenadora e dramaturga Marta Freitas, mãe de um rapaz de 11, Simão, e de uma rapariga de 9, Lucas. “Trabalho muito. Trabalho muitas vezes 15 horas por dia. Tenho de fazer uma gestão de tempo eficaz. Se sei que os meus filhos vão estar em casa ao final do dia, paro para estar com eles, nem que mal eles fechem os olhinhos eu volte para o computador.”

Simão e Lucas vivem entre a casa da mãe e do padrasto e a casa do pai, da madrasta e da meia-irmã, situada uma rua acima. Não lhes faz confusão. “As casas ficam perto”, diz o rapaz, escorregando no sofá. “Acho que é giro, é um tempo para um, um tempo para o outro”, achega a rapariga. “Com o pai vamos mais a concertos, com a mãe vamos mais ao teatro”, prossegue ela.

Frequentam o ensino integrado no Conservatório de Música do Porto. Ela passou para o 4.º ano, estuda violoncelo, ele para o 7.º, estuda piano. “Já têm uma carga horária muito grande”, considera a mãe. Ela e o ex-marido recusam-se a correr com eles de actividade em actividade. “Eles andaram ao sábado no atletismo. Problema: de 15 em 15 dias há competições. Isto de frequentemente transformar fins-de-semana em actividades é uma coisa que está fora de questão.” 

Gostam de ter tempo para estar com os amigos, para estar com os pais ou os avós, para estar consigo próprios – a ler, a ver televisão, a jogar, a brincar ou a nada fazer. “Gosto de ser criança”, diz Lucas. “Um adulto não liga aos amigos a dizer ‘Oh, vamos brincar!’ Nós ligamos. Às vezes, os adultos dizem que têm saudades de ser crianças, porque têm muita coisa para fazer.”

O jornalista Tiago Freitas está a criar uma filha de quatro anos e um filho de seis com a mulher no Funchal. “Estão habituados a que 'exista' tudo. Se passa uma nova série animada na TV, se um filme é lançado no grande ecrã, pedem o jogo. Após uma googlada, fatalmente aparecem inúmeras possibilidades de jogar. O principal desafio é saber onde ter a rédea, que é mais curta por um lado (brincar fora de casa, estar fora do alcance visual dos pais, andar sozinho na rua, ir ao mar desacompanhado) e mais solta por outro (mais respondões, menos obedientes, vida dos pais muito dependente da agenda deles)”.

Hoje, observa o sociólogo Machado Pais, “uma criança necessita de se desconcentrar para ter a impressão de que está adquirindo experiências: joga um videojogo enquanto come pipocas, fala com a avó pelo telemóvel enquanto vê televisão e acaricia o cachorro com o pé. Tarefas múltiplas encarnam uma ideia nascente da experiência: uma presença ubíqua, uma desatenção permanente.” Fazem todos parte da sociedade de consumo. “Boa parte pratica excessos que vão da comida calórica aos meios electrónicos”, torna Machado Pais. “Os horários de dormida nem sempre são respeitados. Muitos têm televisão e computador no quarto, divertindo-se, até altas horas da noite, com videojogos, programas televisivos ou visitas a sites nem sempre apropriados à sua idade. O sedentarismo, por sua vez, tende a aumentar as taxas de obesidade entre as crianças.”

Não é tudo igual. Portugal é um dos países mais desiguais do mundo e isso é óbvio na infância. Os dados do INE mostram que em 2013, 2,2% das crianças com menos de 15 anos pertenciam a famílias incapazes de lhes assegurar pelo menos uma refeição diária de carne ou peixe; 4,3% não podiam trocar roupa usada por nova; 2,4% não tinham dois pares de sapatos de tamanho certo; 5,4% não tinham livros adequados à idade; 7,4% não dispunham de espaço apropriado para estudar; 12,1% não podiam participar em eventos escolares não gratuitos; 24 % não podiam participar numa actividade extracurricular.

Rúben Malhadinhas tem 12 anos e uma energia imensa que esgotou a pedir um IPad à mãe. A mãe, 15 anos mais velha, disse-lhe que era impossível. Ele pediu-lhe que lhe desse então uma Playsation3. Ela tornou a dizer-lhe que não. Ele faz os trabalhos nos computadores da escola e na Qualificar Para Incluir (QPI), uma associação empenhada em travar a reprodução de pobreza. Usa o computador de casa para jogar. O computador é lento. “Está cansado”. E ele tem pressa. “Quero divertir-me, aproveitar a vida.” E fá-lo, sobretudo nos jogos electrónicos, no futebol e no skate. 

Dependentes das condições de vida dos adultos, as crianças sempre foram mais atingidas pela pobreza do que qualquer outro grupo etário. E tudo piorou com a crise, que se agudizou desde 2008. Lucas e Simão nem vêem noticiários. “Na maior parte das vezes, é só desgraças!”, diz ela. André vê: “Nós andamos a poupar e, quando temos alguma coisa de que não precisamos, damos.”

Não fosse a QPI, Rúben ficaria em casa as férias inteiras. Adora participar nas actividades que ocupam mais de cem miúdos em cada mês de Julho. Durante o mês de Agosto, a associação continua a assegurar uma refeição por dia à sua família. Andreia, a mãe, está desempregada. Mesmo com ajuda alimentar, vê-se aflita para comprar os medicamentos de asma para a irmã de Rúben, de cinco anos.

O que será a geração Z no futuro? “Há quem defenda que as nossas sociedades vivem, no domínio cultural, um processo de mutação protagonizado pelos bárbaros que existem à volta e dentro de cada um de nós”, comenta Machado Pais. “O que caracteriza esses bárbaros é a sua fugacidade, a sua capacidade de navegação rápida, o seu deleite em surfar as realidades à superfície, como se não quisessem perder tempo em descobrir-lhes as profundidades. Demanda-se o caminho mais curto e mais rápido para o prazer. Buscam-se conexões, mas as relações que se desenvolvem são marcadas pela fragilidade.”

Neste domínio como noutros, o imaginário nacional balança entre a crise a esperança. Esse paradoxo, explica Manuel Sarmento, faz-se do confronto com a criança-vítima (como aconteceu há pouco com um bebé morto num banho de água a ferver) e com a criança-problema (a da indisciplina, da violência nas escolas, da anorexia, da obesidade), mas também com a criança-rei (que começa a usar as novas tecnologias antes de falar, que apreende a escrever português quase ao mesmo tempo que inglês, que é vista como super-especial). O susto dos adultos com a suposta incapacidade de esta geração adquirir uma cultura de esforço convive com a crença de que resgatará o país do seu papel subalterno, até porque deverá ser a mais preparada de sempre.

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