Falta motivação nas escolas? O rap pode dar uma ajuda

Recorrer à música para pôr os alunos a aprender Matemática: a fórmula pode parecer estranha, mas tem produzido bons resultados em escolas problemáticas dos EUA e está prestes a ser exportada para a África do Sul e a Jamaica. O mérito é de Christopher Emdin, docente nas universidades de Columbia e Harvard que passou pelo Porto.

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Durante mais de uma hora, o norte-americano Christopher Emdin falou sobre a música enquanto instrumento de aprendizagem Miguel Nogueira
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Corria o ano de 2005 quando, ainda a dar os primeiros passos na carreira de professor, numa escola do Bronx, Nova Iorque, Christopher Emdin foi atingido com a memória de que andava a fugir fazia tempo. Entre uma audiência que primava pelo desinteresse a propósito de tudo o que se batia por ensinar, reconheceu, entre os rostos do público que só a custo ia ouvindo o que dizia, uma expressão que sabia de cor: a que costumava ser dele no tempo em que o rap e o basquetebol eram as verdadeiras paixões da sua vida e a escola vinha no final da lista de ocupações, apenas como uma obrigação, que, com mais ou menos vontade, teria de cumprir.

O episódio, partilhado com o PÚBLICO, antes da conferência Let’s start again with the M in STEM, que ministrou na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, serve de passaporte para uma história de vida e um percurso que, no fundo, se resumem a um propósito bem simples – repensar os moldes tradicionais do actual sistema educativo.

“Quando comecei a ensinar, os meus pontos de referência eram os professores que eu tinha tido. E mesmo querendo ser bom naquilo que fazia, aquilo que fiz foi copiá-los. Mesmo sabendo que não era eficaz, era o único modelo que eu tinha e comecei a implementá-lo. Só que, como seria de esperar, os miúdos responderam da maneira que eu respondia quando era adolescente. E, quando percebi que aquele miúdo era eu, pensei: ‘Não, vais ter mesmo de fazer alguma coisa para mudar isto’”, recordou o investigador e docente nas universidades de Columbia e Harvard, nos EUA. 

Hoje, quem o vê interagir com a audiência mal conseguirá acreditar que, um dia, Christopher teve dificuldades em captar a atenção de quem quer que tenha sido. Frente a um público formado por dezenas de adolescentes a frequentar a Universidade Júnior (um programa promovido pela Universidade do Porto e que visa iniciar os estudantes do básico e do secundário no ambiente universitário, ajudando-os a escolher um curso), o especialista em áreas tão distintas como Educação Urbana, Biologia, Química e Antropologia agarrou os jovens interlocutores à primeira frase, com a desconcertante naturalidade de quem parece que nem precisa de se esforçar um bocadinho que seja. 

Sentado em cima da secretária, Christopher desarmou-os num assomo de simplicidade, ao brindá-los com um momento de beatbox (a percussão vocal característica do hip-hop). O motivo? Bom, primeiro porque, defende, o beatbox é, em si mesmo, uma “fórmula matemática”, na medida em que exige um determinado número de batidas para que o resultado final seja um som harmonioso. Depois porque, a seu ver, existem apenas duas linguagens verdadeiramente universais: a matemática e a música. Logo, faz todo o sentido que se interliguem de forma a extrair o melhor de cada uma delas. “Vivemos num mundo em que forçamos as crianças a tomar decisões que não têm de tomar: Arte ou Ciência, Matemática ou Inglês, Línguas ou Física. Podemos fazer tudo ao mesmo tempo, temos essa capacidade”, sublinhou.

Mudar o mundo
Este inconformismo face a um mundo que não concebe que a Arte e Ciência possam ser aliadas, em vez de rivais, estaria na génese de um projecto que o enche de orgulho: o Genius Battles. “É essencialmente uma parceria entre mim e um rapper, o GZA, dos Wu-Tang Clan, [um grupo de hip-hop americano], em que escolhemos algumas escolas, vistas como as piores, onde havia crianças onde já ninguém dava nada por elas. Desafiámo-las a aprender Ciência fazendo rap. Depois tornámos o desafio ainda mais intenso, criando uma competição entre escolas e dizendo-lhes ‘vai haver miúdos a fazer exactamente a mesma coisa e vocês vão competir com eles’. Isso motivou-os e tornaram-se brilhantes”, explica, não escondendo que essa foi “a coisa mais gratificante” que fez até hoje. 

No final do ano, reuniram-nos a todos na Universidade de Columbia e escolheram um vencedor, que, num ápice, virou uma espécie de celebridade, com direito a destaque nos jornais, na CNN, na ABC e um pouco por topo o panorama mediático norte-americano. Só que o pequeno momento de glória do vencedor, Jabari Johnson (ou Jalib, o nome artístico), é apenas uma ínfima parte dos resultados mais abrangentes que o projecto tem alcançado. “Nos sítios por onde temos passado, as crianças começam a ir à escola com muito mais frequência. Conseguimos taxas de assiduidade de 94%/95% quando, em alguns casos, andavam à volta dos 60%”, entusiasma-se.  

Razões não lhe faltam: o projecto está hoje implantado em mais de 30 escolas, entre Nova Iorque, Houston, Florida e Tennessee, e, segundo nos conta, chegará também a países como a África do Sul e a Jamaica. O sucesso é de tal ordem que não tem faltado quem se voluntarie para ajudar nesta “causa”. “Há pessoas que desistiram da escola e que me dizem ‘Eu quero fazer parte disto porque quero evitar que outros passem pelo mesmo que eu’, pessoas que não tiveram sucesso nestas áreas e que querem evitar que aconteça o mesmo a outros”, salienta, ressalvando que, apesar de se sentir “orgulhoso” por ter começado tudo isto, neste momento pode dormir descansado, uma vez que, pela mão de pessoas que, tal como ele, sonham “mudar o mundo”, o projecto ganhou vida própria. 

O rap desde cedo
Mas, afinal, como explicar esta predilecção pela cultura urbana? Bem, fomos encontrá-la nos primórdios dos seus 36 anos de existência. É que Christopher nasceu em Brooklyn, numa família pobre e num bairro complicado. Na altura, o futuro como rapper preenchia-lhe o imaginário, mas o que recebia em troca era apenas a reprovação dos professores. “Na comunidade onde cresci, porque éramos pobres e negros, as pessoas achavam que não tínhamos capacidades intelectuais e então nem sequer nos davam aulas mais avançadas de Ciência, porque simplesmente pensavam que não conseguíamos”, lamenta. Um estigma que haveria de o perseguir até à universidade: “Hoje tenho um fato e uma gravata, mas na altura tinha uma camisola de basquetebol e um chapéu de basebol e quando fui para a faculdade toda a gente se reteve nessa imagem e não me viram como um intelectual.” 

Este é precisamente um dos estereótipos que Christopher se esforça por combater no actual sistema educativo. “Não valorizamos os estudantes realmente brilhantes, só os que são os primeiros a pôr o braço no ar quando os professores fazem uma pergunta”, aponta, enquanto justifica a tese com um dos mais gritantes paradoxos da história – o caso de Albert Einstein, um cientista brilhante, sem qualquer sucesso a nível escolar. 

Um problema global
Confrontado com o diagnóstico que muitos fazem do sistema educativo português (professores pressionados, demasiados chumbos e resultados desastrosos, sobretudo a Matemática, conforme se percebe pela média de 9,2 valores registada nos exames nacionais do 12.º ano, em 2014), Christopher lembra que os problemas são globais: "Validamos sempre os alunos que seguem as regras, dizemos-lhes que são os melhores, mas, estamos a perder os estudantes mais brilhantes por causa das limitações do sistema educativo. É por isso que é urgente adoptar uma pedagogia realista – temos de perceber de onde eles são, o que ouvem, o que fazem quando saem da escola, quem são os seus heróis e usar isso como método de ensino. Se por todo o mundo nos esforçarmos para não deixar cair estas pessoas, vamos ter matemáticos e cientistas ainda mais brilhantes. A escola não tem de ser uma coisa chata”, defende. 

E afinal, estarão ou não os rapazes mais talhados para as áreas científicas? “Isso é uma mentira que tem vindo a ser perpetuada. O que sabemos, cientificamente, é que a estrutura cerebral das raparigas é a mesma que a dos rapazes. Pensam exactamente da mesma forma. O problema está nas mentalidades: é preciso cultivar, desde o início, a ideia de que as mulheres são brilhantes, que são fantásticas intelectualmente, em vez de as rodear de Barbies. Se lhes dermos as mesmas ferramentas, elas vão ter as mesmas capacidades.”

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