Falência do Serviço de Saúde instalou caos no Hospital Central do Funchal

Ruptura de medicamentos, falta de equipamentos, infecções hospitalares em número alarmante, longas listas de espera para consultas e cirurgias causam apreensão em utentes aos quais até roupa de cama e papel higiénico faltam durante internamento. Um caos, reconhece a própria administração.

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O governo regional desistiu da construção de um novo hospital e optou por obras no Hospital Nélio Mendonça, inaugurado em Setembro de 1973 Público (arquivo)

O desinvestimento no sector da saúde está a provocar uma situação caótica no Hospital Central do Funchal, que engloba as unidades hospitalares Nélio Mendonça e Marmeleiros. Em situação de falência técnica, o Serviço Regional de Saúde (SRS, EPE) atravessa a sua maior crise, agravada pelas restrições e cortes determinados pelo Programa de Ajustamento Económico e Financeiro da Madeira para inverter a declarada falência.

Francisco Rodrigues e Carmelita Spínola, ambos de 55 anos, aguardam há dois anos, impacientemente, por próteses da anca e do joelho no serviço de ortopedia do Hospital Nélio Mendonça que adia a cirurgia por falta de material. No Hospital dos Marmeleiros, a família de António Freitas, com 72 anos, acamado com problemas respiratórios crónicos, esforça-se por ultrapassar a falta roupa de cama e artigos indispensáveis aos mais básicos cuidados de higiene, por não estarem a ser fornecidos pela instituição. Mário Freitas, diabético, com 28 anos, recebeu o diagnóstico de uma grave doença oftalmológica - está na iminência de ficar cego -  e foi  colocado numa lista de espera de dois anos. Declinou a sugestão de imediato atendimento, pelo mesmo médico hospitalar, numa clinica privada do Funchal e optou por ser operado, a expensas próprias, em Coimbra. “É uma vergonha”, protesta Francisco. “Até papel higiénico pedem à minha família para trazer”, frisa António. 

Reveladores da preocupante situação vivida no Hospital Central do Funchal, nos últimos dias deram entrada no parlamento regional seis pedidos de audição dos responsáveis máximos pela saúde na região, dois dos quais apresentados pelo PSD que além das suas iniciativas apenas viabilizou outra proposta do PS, rejeitando duas do CDS-PP e uma do PCP. Os deputados, fazendo eco das reclamações dos utentes e dos profissionais do sector, exigem explicações do secretário dos Assuntos Sociais, Jardim Ramos, e do presidente da Administração do Serviço Regional de Saúde (SESARAM), Miguel Ferreira, sobre a existência de faltas e falhas graves. Esta quarta-feira, um requerimento do CDS-PP para a constituição de uma comissão parlamentar de inquérito às consequências clínicas e económicas das infecções hospitalares no Serviço Regional de Saúde, acabou por ser rejeitado pela maioria PSD na Assembleia Legislativa da Madeira. Todos os deputados da oposição votaram a favor

“A saúde é, sem dúvida, a área mais polémica e contestada na qual recaem dúvidas, suspeitas e, certamente, discordância sobre a actuação do Governo da Madeira”, frisa o presidente da comissão parlamentar dos Assuntos Sociais, Mário Pereira (CDS/PP) que em Abril de 2012 subscreveu o pedido de inquérito à gestão financeira e à direcção clinica do SESARAM. Mais recentemente requereu uma auditora clínica à farmácia hospitalar.

Infecções aumentam 44%
As consequências clinicas e socio-económicas das infecções hospitalares no Serviço Regional de Saúde estiveram em foco nos últimos dias, mas o inquérito requerido por aquele partido sobre tal matéria e outro sobre a aquisição de equipamentos foram rejeitados pelo PSD. Os dados reportados pelas instituições regionais à Direcção-Geral de Saúde são preocupantes, pois referem que no espaço de três anos (2010/12) o número de infecções hospitalares aumentou 44%, sendo de 14,4% a taxa registada em 2013, o valor mais alto do país.

“Estamos a falar de infecções hospitalares adquiridas após internamento hospitalar e que não resultam directamente da doença, nem são motivadas por esse internamento, mas sim da interacção do doente com o ambiente físico e biológico do hospital”, refere Mário Pereira. “O nível de carências na reposição de material clinico consumível existente e admitido pelo SRS, por via das dificuldades financeiras que atravessa, favorece o risco acrescido de infecções”, alerta, exemplificando com inexistência regular de pensos e cobertura de feridas, luvas, aventais, máscaras, material de desinfecção e higiene, como álcool e sabão, nas  enfermarias, gabinetes e outros locais de prestação de cuidados.

Além das insuficientes acções de prevenção, o médico aponta também a inadaptação das actuais instalações hospitalares, as constantes e frequentes obras que deterioram a qualidade do ar e a inexistência de corredores técnicos nos hospitais Nélio Mendonça e dos Marmeleiros. “Pelo mesmo corredor passam utentes internados, visitas, profissionais, medicamentos, alimentação, lixo, material administrativo e equipamentos médicos, bem como os cadáveres aquando dos óbitos”, conta Mário Pereira.

Tanto a Ordem como o Sindicato Independente dos Médicos têm criticado a gestão do SESARAM e lamentado as circunstâncias que levaram à retirada da idoneidade formativa em varias especialidades, à ruptura de bens de primeira necessidade no SRS e à taxa de doentes em listas de espera cirúrgicas 3,5 vezes superior à média nacional, mas não divulgadas. ”Não há uma política de transparência e de verdade no SESARAM, mas de ocultação até aos próprios profissionais”, lamenta Juan Carvalho, presidente do Sindicato dos Enfermeiros.

Faltam vacinas
Outro exemplo, no serviço de gastrenterologia do Hospital Nélio Mendonça, remodelado e modernizado em 2011, apenas uma das sete máquinas de colonoscopias está operacional. Alarmante também é a falta de vacinas “obrigatórias” nalguns centros de saúde, caso das anti-tetânicas e da BCG contra a tuberculose.

O Serviço Regional de Saúde “foi durante anos, o orgulho da autonomia madeirense, mas gradualmente definhou, não inovou, nem foi devidamente financiado”, lamenta ao PÚBLICO aquele médico e deputado. “O desinvestimento na saúde não tem paralelo em nenhuma outra área da região”, frisa Pereira.

Para o presidente do Sindicato dos Enfermeiros, a situação de “caos”, reconhecida por Miguel Ferreira relativamente ao Hospital Central, está instalada em todas as áreas do SESARAM que “atravessa o pior período de sempre”. E, alerta Juan Carvalho, se não forem tomadas medidas de imediato, “vai deteriorar-se cada vez mais”.

Miguel Ferreira - embora recuando quanto à classificação de "caos” com que caracterizou a actual situação do hospital - reconhece as rupturas de medicamentos e equipamentos que considera “meramente pontuais” e atribuí a exigências do PAEF. “Com a imposição legal de baixar 15% em todos os fornecimentos, os concursos têm ficado desertos, obrigando a atrasos no aprovisionamento que terá de ser feito posteriormente através de novo concurso” aberto por despacho da tutela, justificou ao PÚBLICO o presidente do SESARAM, que em Abril próximo, quando entrar em vigor o novo estatuto do gestor público regional, poderá deixar o cargo por incompatibilidade com a actividade exercida no sector privado.

“Não se pode fazer melhor porque não se pode ultrapassar os imperativos legais”, justifica Ferreira que considera impossível fazer maior contenção E nota: “Em 2012 tínhamos uma divida acumulada de 630 milhões, que pretendemos baixar para 490 milhões no final do ano”.

Falência técnica
O passivo do SESARAM no final do terceiro trimestre de 2013 atingia os 598 milhões (86% do valor global das entidades públicas empresariais da região), sendo os resultados transitados do capital próprio negativos em 295 milhões. Esta situação de falência técnica, comum a outras oito empresas públicas regionais já reconhecida pelo Tribunal de Contas, poderá levar a uma perda de autonomia financeira, como aconteceu com a Administração dos Portos da Madeira.

Em 2012, primeiro ano de vigência do PAEF, a média dos custos operacionais de todo o sector publico empresarial da região foi de apenas 5%, muito aquém da meta de 15% fixada pelo governo regional. A redução verificada foi feita, sobretudo, à custa do SRS, frisa o líder parlamentar do PS, Carlos Pereira, que acusa o executivo de Jardim de insensibilidade e de uma tendência para “salvaguardar caprichos e interesses de poder” noutras áreas.

Para “garantir a sustentabilidade do Serviço Regional de Saúde e a viabilidade da entidade publica que presta serviços no sector”, o governo regional comprometeu-se a tomar medidas estruturais, entre as quais a adopção de medidas tomadas a nível nacional. Entre estas, está a redução da despesa com  medicamento, a implementação da prescrição electrónica de medicamentos e de meios de diagnóstico e terapêutica, a aplicação de taxas moderadoras, o acesso ao sistema centralizado de aprovisionamento para a compra de dispositivos médicos no âmbito do SNS, a reanálise do funcionamento dos centros de saúde e a racionalização das prestações de serviços e dos consumos. Mas algumas das medidas tomadas através de precipitadas iniciativas legislativas acabaram por ser chumbadas, como a portaria dos idosos, as carreiras da saúde, o transporte de doentes e, recentemente, as taxas moderadoras declaradas ilegais pelo Tribunal Constitucional

Com essas drásticas medidas, o governo regional que desistiu da construção de um novo hospital, para o qual tinha já expropriado terrenos em São Martinho (optando por obras de remodelação e ampliação do Hospital Nélio Mendonça, inaugurado em Setembro de 1973), comprometeu-se a assegurar uma redução de custos na ordem dos 20 milhões de euros. O governo regional “adopta as medidas financeiras, mas é laxista nas medidas estruturais e na optimização da gestão dos recursos. O lema parece ser o de cortar nas remunerações e consumíveis para poder continuar com as obras de utilidade duvidosa”, conclui o presidente da comissão parlamentar dos Assuntos Sociais, Mário Pereira (CDS/PP). 

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