“Não vamos culpá-lo por estar vivo”, diz juiz que recusou levar dux do caso do Meco a julgamento

“Eram todos adultos, estavam lá porque queriam”, resumiu na leitura da decisão instrutória o juiz Nélson Escórcio. Famílias vão recorrer para o Tribunal da Relação de Évora.

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Familiares dos jovens que morreram ficaram revoltados João Silva

O Tribunal de Setúbal decidiu não levar a julgamento o único sobrevivente da tragédia do Meco, o arguido João Gouveia. “Eram todos adultos, estavam lá porque gostavam da praxe e porque queriam”, resumiu o juiz Nelson Escórcio quando explicou os porquês da sua decisão sobre o afogamento dos seis estudantes da Universidade Lusófona na praia, em Dezembro de 2013. "Há uma sétima vítima neste caso, que é o arguido", declarou ainda. "Não vamos culpá-lo por estar vivo”.

Inconformadas, as famílias das vítimas mortais vão recorrer para o Tribunal da Relação de Évora, numa derradeira tentativa de ainda levar o caso a julgamento. Depois disso resta-lhes apenas uma queixa contra o Estado português junto do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, hipótese que também não descartam. O magistrado aconselhou-as a "olhar objectivamente" para os dados que constam do processo judicial, pois só assim poderão "aceitar a realidade", por muito dolorosa que lhes seja.

"Queremos a verdade ou uma realidade que nos permita melhor aceitar o sucedido?", interroga, num despacho em que alude tanto à sua experiência pessoal como à sabedoria popular para justificar a opção de não levar o ex-dux a julgamento. Chega a contar que também ele foi praxado com a chamada “comida de gato”, um paté que já na sua altura não era, apesar da designação e da correspondente lata em que vinha servido, verdadeira ração para felinos.

Para o tribunal não há, ao contrário do que defendem os pais dos jovens, indícios de que João Gouveia tenha "sujeitado, pelo menos conscientemente, os colegas falecidos a um perigo que não pudessem eles próprios avaliar e evitar", conforme está estipulado na lei para que alguém possa ser incriminado por exposição ao perigo.

"O mar mata todos os anos e todos os dias", salienta Nelson Escórcio, que chama a atenção para o facto de os jovens terem sido “pouco precavidos” na sua ida à praia, um comportamento de resto próprio da sua idade. Como próprio da sua idade terá sido também o consumo de bebidas: “Um fim-de-semana sem álcool seria até contra a prática comum – já era assim no meu tempo, há 30 anos atrás”. Se João Gouveia convenceu os outros a beber, mantendo-se sóbrio, é coisa que não ficou determinada – tal como sucedeu relativamente ao seu ascendente sobre os colegas. Aqui, porém, o magistrado a quem coube analisar o caso não é taxativo: se por um lado esse ascendente era “apenas o que resultava da comissão de praxe”, por outro não se considerou indiciado que “mantivesse sobre os colegas um qualquer efectivo dever de guarda, vigilância ou assistência”. Mas é precisamente a consciência que tinha do “papel de liderança e responsabilidade que assumia” naquele fim-de-semana de Inverno que poderá, no entender do tribunal, justificar o facto de se ter recusado a conversar com os pais dos colegas sobre o que se passou – à excepção de uma mãe com a qual chegou a encontrar-se, e que não duvida de que tudo tenha sido um acidente. “Poderá qualquer um de nós acreditar honestamente que, no seu lugar, com a sua idade, teria comportamento distinto?”, interroga Nelson Escórcio, para quem todo este processo terá “um impacto profundamente negativo e traumatizante no jovem”.

O facto de praticar bodyboard poderá explicar por que razão se salvou. Os depoimentos dos médicos que assistiram João Gouveia, que se apresentava encharcado e em estado de hipotermia, contribuíram para consolidar a ideia do tribunal de que a sua versão dos factos corresponderá à realidade. E se o teor de algumas das mensagens de telemóvel demonstram, aos olhos dos pais das vítimas, uma submissão quase inadmissível dos filhos ao seu superior hierárquico na comissão de praxe, aos olhos da justiça mostram antes “um manifesto divertimento na sujeição a práticas de praxe que individualizadamente se terão por desagradáveis e até incompreensíveis”. A comprová-lo estão os LOL e os smiles com que vários desses sms terminam. “A sensação de pertença a um grupo fechado, unido, com um propósito definido era-lhes manifestamente apelativa”, escreve Nelson Escórcio, que recorre a um provérbio popular: “Quem corre por gosto não cansa”.

Se poderiam ter sido feitas mais perícias e ouvidas mais testemunhas neste processo? Claro que sim, reconhece o magistrado: “Podemos continuar a cavar, à procura, sem nada de concreto”. Mas seria inútil, observa.

Já a investigação à morte dos seis estudantes tinha terminado com um despacho de arquivamento, onde se constatava “a total inexistência de indícios da prática de qualquer crime”. Foram os pais que forçaram a reabertura do processo, que passou então do Tribunal de Almada para o Tribunal de Setúbal. “Enquanto não tivermos respostas não vamos desistir”, garantiam esta quinta-feira à saída da sala de audiências, depois de conhecerem a decisão de não pronúncia de João Gouveia. “Só me faltam duas ou três peças do puzzle para desmontar isto tudo”, dizia uma das mães, Fernanda Cristóvão. “Afirmam que os nossos filhos estavam lá porque queriam? Então a nossa sociedade não protege as mulheres que levam enxertos de pancada dos maridos? Não dizem que ficam em casa com eles porque querem, pois não?”.

 

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