Exclusividade dos médicos: quase todos concordam, poucos acreditam

A separação entre o sector público e o sector privado, cujo ponto fulcral é a exclusividade dos médicos, voltou à agenda. Mas é uma reforma tão complexa que dificilmente avançará nos próximos tempos.

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Paulo Macedo defendeu em Janeiro separação do público e do privado, retomando uma ideia de 1989 Paulo Pimenta

O tema surgiu pela primeira vez em 1989 pelas mãos da então ministra Leonor Beleza. Quase 25 anos depois, a separação dos médicos entre sector público e sector privado recolhe grandes consensos à esquerda, à direita e entre os profissionais. É, aliás, difícil encontrar no sector uma proposta que recolha tantos elogios e que seja considerada tão fundamental para a transparência. No entanto, a exclusividade no seu estado mais puro nunca saiu do papel. Agora, o tema entrou na agenda do ministro Paulo Macedo, que quer implementar esta reforma. Mas os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO não acreditam que ela vá avançar.

Desde logo porque não existem estudos que descrevam o que seria necessário para esta mudança, que é considerada extremamente complexa. Depois, há perguntas essenciais que continuam sem resposta. Em primeiro lugar, quanto custa? Ninguém sabe e há vários entendimentos sobre os incentivos necessários. Quantos médicos teriam de sair do Serviço Nacional de Saúde (SNS)? Mais uma vez, as necessidades em saúde estão pouco definidas e as consequências da saída de médicos são pouco claras até em termos da qualidade dos que ficam.

E o que deixaria o sector privado de fazer? Neste campo, o objectivo seria reduzir convenções, mas não se sabe até que ponto os hospitais públicos poderiam produzir mais com os actuais contratos. Como tornar esta reforma uma realidade? Há apenas uma única certeza: a acontecer, ela terá de ser feita com grande prudência.

Só 30% com dedicação exclusiva nos hospitais
Os últimos dados da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) indicam que só cerca de 30% dos médicos trabalham nos hospitais em dedicação exclusiva. Nos cuidados de saúde primários são 70%. E nem todos têm o mesmo horário. Há quem trabalhe 35 horas semanais com ou sem dedicação exclusiva, 40 horas, ou 42 horas com dedicação exclusiva (o regime criado por Leonor Beleza e descontinuado por existirem demasiados interessados), entre outros regimes.

No final de Janeiro, o ministro da Saúde anunciou que quer avançar para a "separação dos profissionais em termos do sector público e privado", reconhecendo que são necessários incentivos e que esta não é uma ideia para ser incluída no debate da reforma do Estado, não fazendo sequer parte do memorando de entendimento com a troika. Pouco antes de Macedo, o antigo ministro da Saúde Correia de Campos e o antigo Presidente da República Jorge Sampaio tinham voltado a insistir na importância desta mudança, acima de tudo em nome da transparência e de um futuro sustentável para o SNS.

Do lado dos clínicos, o bastonário da Ordem dos Médicos concorda com a separação de águas mas destaca a complexidade da medida que “implicaria repensar todo o sector público”. Já o gestor e médico Adalberto Campos Fernandes, que já esteve à frente do Hospital de Santa Maria e que está de saída do Hospital de Cascais para o sistema privado SAMS, lembra que se poderia poupar em horas extraordinárias e trabalho externo, mas diz que o actual problema está mais na falta de autonomia das instituições e que se a reforma não for bem pensada que há o risco de saída dos médicos para o sector privado.

"Conversa para entreter"
Uma ideia também defendida pela antiga ministra da Saúde Ana Jorge, que tentou avançar com a separação mas que esbarrou nas dificuldades financeiras, e pelo antigo secretário de Estado da Saúde Manuel Pizarro, actual deputado do PS. Ambos destacam, contudo, que mesmo que os médicos trabalhassem mais horas há contratos-programa que limitam o máximo que os hospitais podem produzir. Pizarro fala, por isso, “numa conversa para entreter”.

A separação dos médicos entre público e privado foi uma questão que ficou de fora do estudo sobre a Reforma Hospitalar coordenado por José Mendes Ribeiro para o Ministério da Saúde, que acredita que a solução pode passar por uma experiência-piloto no Hospital de São João. A sugestão do maior hospital do Norte do país surge depois de o seu presidente ter dito no início de Janeiro que podia dispensar cerca de 1200 dos 5600 trabalhadores se os outros ficassem com exclusividade e com 40 horas - o que gerou grande polémica. Contactado pelo PÚBLICO, António Ferreira não quis falar sobre o assunto.

Do lado dos sindicatos há apoio à separação entre público e privado - sobretudo para acabar com promiscuidades -, mas existe uma enorme descrença. "É uma medida com demasiadas implicações", resume o presidente da Federação Nacional dos Médicos, que estima que de momento a exclusividade represente um acréscimo de remuneração na ordem dos 40% e que um regime mais rígido exigiria mais. Do lado do Sindicato Independente dos Médicos, o secretário-geral sublinha também que os médicos "gostavam de não ter de saltar" entre vários locais para terem um ordenado compatível com a função mas acredita que estamos apenas perante uma medida “muito mediática”.
 

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Conheça mais argumentos dos especialistas sobre esta reforma, as conclusões do estudo de Carlos Gante que critica a dedicação exclusiva, bem como um trabalho que mostra que os médicos portugueses estão entre os mais mal pagos da Europa.

Leia, ainda, a experiência de quatro médicos que trabalham em quatro modelos diferentes. O cirurgião Emanuel Furtado conta que está só no serviço público por falta de tempo. O neurocirurgião Rui Vaz explica que com 2000 euros por mês tem de acumular a actividade pública com a privada. Já o pediatra Mário Cordeiro optou por ficar só no privado e diz que "um médico não deve dar consultas nos dois lados". O cirurgião Manuel Antunes está à frente do primeiro Centro de Responsabilidade Integrada do país, que lhe permitiu estar só no Serviço Nacional de Saúde com mais autonomia. Mas as recentes medidas deixam-no descrente.

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