Eu, colunista leviano, me confesso

A liberdade de expressão só faz sentido como conceito se acreditarmos que as palavras podem ser separadas dos actos.

Fernanda Câncio respondeu ao meu texto sobre a psicóloga Maria José Vilaça com um artigo no Diário de Notícias intitulado “A psicóloga anormal e o colunista leviano”. A psicóloga anormal é ela e o colunista leviano sou eu. Em primeiro lugar, deixem-me usar da minha melhor leviandade para dizer que mesmo que a Fernanda tivesse toda a razão naquilo que diz (tem alguma, não toda), só o facto de ter escrito 12 mil caracteres de argumentos já me fez ganhar o dia. Adoro gente a discutir. Detesto gente a mandar calar e a insultar.

Em segundo lugar, quero avançar para o ponto em que a Fernanda tem razão. Maria José Vilaça fez declarações parvas à Família Cristã, que não acho que justifiquem a abertura de um inquérito pela Ordem dos Psicólogos, mas tem também um vídeo antigo a correr na Internet onde sugere ter andado a atender pacientes homossexuais e a tentar “curá-los”. Neste último caso, a intervenção disciplinar da Ordem já me parece completamente justificada, porque estamos num outro patamar, que não o da liberdade de expressão. Não é difícil distinguir uma coisa da outra. Há uma diferença radical entre dizer coisas e fazer coisas. Não é o mesmo dizer “eu parto-te a cara” e partir efectivamente a cara a alguém. Não é o mesmo dizer “a homossexualidade não é natural” e ter um consultório aberto onde se “cura” homossexuais da sua “doença”. A Fernanda recorre a um exemplo e pergunta: “Pode um médico ser testemunha de Jeová?” Eu respondo: pode, desde que seja radiologista. Até digo mais: pode trabalhar numa urgência, desde que não recuse transfusões de sangue aos outros.

A liberdade de expressão só faz sentido como conceito se acreditarmos que as palavras podem ser separadas dos actos. Se “dizer” passar a ser tão grave como “fazer” – e é para aí que a sociedade dos “trigger warnings” está a avançar –, então a liberdade de expressão fica esvaziada de sentido. Foi por isso que escrevi o meu texto de há dois dias, ainda que as palavras de Maria José Vilaça me repugnem tanto como a Fernanda Câncio.

Há um terceiro ponto importante em relação a este tema: a confusão entre a luta por direitos sociais e o conhecimento científico. Querer metê-los na mesma cama é péssima ideia. Por isto: a dificuldade em calar Maria José Vilaça, e outros como ela, tem a ver com o facto de a biologia não ter uma resposta clara para a homossexualidade. Mas… será que eu posso dizer isto aqui sem ser considerado homofóbico? Facto um: não é uma doença, e por isso a senhora Vilaça não pode andar a “curar” homossexuais. Facto dois: os mecanismos da homossexualidade não são conhecidos, o que facilita a vida aos malucos homofóbicos. E promove o exercício da liberdade de expressão.

Afinal, parece não haver uma única causa para a orientação sexual. A questão do nature versus nurture não está resolvida. E a teoria genética comporta um paradoxo darwiniano de difícil resolução (como é que o “gene gay” persiste ao longo de milénios se os indivíduos que o possuem não se conseguem reproduzir?). Mais: o mundo progressista considera hoje a orientação sexual fluida e a sexualidade uma construção social. Ora, como é que eu compatibilizo a afirmação de que escolho (ou me impõem) a minha identidade de género, mas não escolho a minha sexualidade? Vivemos num mundo onde os mais progressistas já usam os mesmos argumentos dos mais conservadores. Como se vê, tudo isto são questões fascinantes e complexas. Que merecem ser sempre discutidas. Nunca silenciadas.

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