"Eu atropelo-vos com o carro. Eu rego a casa com gasolina. Eu incendeio tudo!"

É uma medida raramente aplicada em processos de violência contra idosos em Portugal: um rapaz de 20 anos está em prisão preventiva por agressões contra pais e irmãs. À Associação Portuguesa de Apoio à Vítima chegam cada vez mais pedidos de ajuda de idosos agredidos pelos respectivos filhos ou filhas

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Um estudo mostra que a violência financeira é a mais sofrida pelos idosos em Portugal Corbis

Só tem 20 anos. O Ministério Público (MP) acusou-o de 13 crimes de ameaça agravada, três de violência doméstica, três de coacção agravada, dois de perturbação da vida privada. Aguarda julgamento no Estabelecimento Prisional do Porto e está proibido de telefonar e de escrever à mãe e ao pai.

Houve um pico de violência no último Verão. Os pais deixaram de o aceitar em casa. E ele não os largava. “Eu mato-vos! Eu rego a casa com gasolina. Eu incendeio tudo!” “A mãe vive fechada, não abre portas nem janelas com medo de que o filho assalte a casa e a mate”, escreveu então o pai, Amaro.

As cartas escritas ao MP por Amaro, um oficial de justiça aposentado, constam do processo que o PÚBLICO consultou na 2.ª secção do Departamento de Investigação e Acção Penal, em Vila Nova de Gaia. E permitem perceber como a ansiedade ia tomando conta do homem, de 82 anos, e da mulher, de 61.

Na manhã de 19 de Agosto de 2015, quando a mãe, Fernanda, chegou à cozinha, o filho, Filipe, já lá estava, sentado. “Estás a olhar para mim?”, terá perguntado, de forma hostil. Ter-lhe-á exigido 900 euros. Ela disse que não lhos dava, que não podia, que não os tinha. Filipe ter-lhe-á cravado as unhas num braço.

Fernanda soltou um grito, horrorizada. Amaro abriu a porta do quarto. Fernanda correu para lá. Fecharam-se. Filipe pontapeou a porta, forçou a fechadura. Agrediu o pai, que ainda tentou detê-lo, e virou-se para a mãe, ao soco e pontapé. Cansado de tanto desaforo, o pai chamou a polícia.

A dimensão do silêncio

Há anos que Fernanda se consumia, sem saber como travar a escalada de violência. O medo misturava-se com a tristeza, com a vergonha, com o sentimento de culpa, com a indignação. Não tem qualquer filho o dever de respeitar pai e mãe? Não é inquebrável o laço entre pais e filhos?

O primeiro estudo sobre a prevalência de violência contra idosos na população portuguesa — proposto pelo Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, conduzido pela socióloga Ana Paula Gil e publicado em 2015 — mostra a dimensão do silêncio: 64,9% das vítimas nunca apresentaram queixa. À Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) chegam cada vez mais pedidos de ajuda de idosos agredidos pelos respectivos filhos ou filhas: 687 em 2013, 706 em 2014, 810 em 2015.

Custa sempre assumir, nota Teresa Morais, que no DIAP do Porto coordena a secção dedicada aos crimes de violência doméstica. A violência praticada por um filho “repercute-se muitas vezes na vítima como uma assunção de que ela própria falhou e que toda a actual vivência é, no fundo, resultado de um prévio fracasso educativo ou inter-relacional”, explica. Os tribunais deparam-se, com frequência, com “processos de desculpabilização do agressor e resistência ao inquérito”.

Fala-se muito no envelhecimento da população, no índice de dependência dos idosos, da violência como resultado do cansaço e do ressentimento dos cuidadores, mas muitas vezes o agressor é que depende da vítima, sublinha a socióloga Isabel Dias, professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Mora em sua casa, pede-lhe dinheiro para fazer face às despesas do dia-a-dia. Atrás da violência contra os idosos podem estar inúmeros factores, como o consumo abusivo de drogas ilícitas, o stress ou uma certa naturalização da violência na família.

O processo não se detém na infância de Filipe em Vilar do Paraíso, no interior de Vila Nova de Gaia. Guiando-se pelas testemunhas, aponta para uma adolescência atribulada, sem gosto pela escola, com consumo abusivo de drogas ilícitas, prática de furtos, pequenos actos de vandalismo.

O Tribunal de Família e Menores condenou-o a uma medida de internamento num centro educativo. Apenas durante esse período, que se terá estendido por mais de um ano, viveu longe do antigo oficial de justiça e da companheira, que muitos anos se dedicara a cuidar da casa e dos filhos.

“Quero dinheiro”

Não trabalhava nem estudava. Não contribuía para as despesas lá de casa. Desde 2011, amiúde pedia dinheiro à mãe. No último ano, desde que voltara do centro, fazia-o todos os dias. Se ela se recusava a dar-lhe pelo menos cinco euros, ele engrossava a voz: “Quero dinheiro. Senão vai arder o diabo, vais ver!” Acontecia atirar o que tinha à mão para o chão ou pela janela.

“Anda acompanhado, ao que parece, por um gangue, que o leva a furtar de casa vários objectos de valor”, escreveu o pai, numa das cartas destinadas ao MP. Desapareceram, por exemplo, duas alianças e um anel de brilhante. Naqueles dias desapareceu da garagem uma bateria de carro e um carregador.

Pelo estudo conduzido por Ana Paula Gil se conclui que a violência financeira é a mais sofrida pelos idosos em Portugal. Ocorre, sobretudo, dentro da família nuclear (mais os filhos do que as filhas). Mas muitos vivem várias formas de violência em simultâneo, como terá acontecido com Fernanda e Amaro.

Durante o inquérito judicial, Fernanda contou que certa ocasião o filho se atirou a ela. Ela fugiu pela porta fora. E ele foi atrás: “Anda para casa!” Amaro é que chamou a polícia. Noutra ocasião, deu-lhe um empurrão tão forte que ela ia caindo — evitou a queda segurando-se na banca da cozinha.

No dia 19 de Agosto de 2015 ultrapassou o limite traçado pelos pais. Nunca mais o deixaram voltar a casa. Tentou forçar a entrada várias vezes nos dias seguintes. Destruiu cinco portas. Abriu uma janela, com um pau deitou coisas ao chão — um computador portátil, livros, bibelots. E o pai foi chamando a polícia.

No dia 22 daquele mês, por exemplo, Amaro viu Filipe a tentar arrombar o portão da entrada. Tornou a chamar a polícia. A 4 de Setembro, estava um serralheiro a arranjar duas delas, tê-lo-á visto na rua. Filipe ter-lhe-á dito que havia de os atropelar, de lhes partir as pernas. Nada daquilo pararia enquanto não os matasse.

Afirmou Amaro que o filho lhe telefonava umas 15 vezes por dia. No início, atendia e ouvia-o repetir frases ameaçadoras: “Eu fodo-vos”; “Eu atropelo-vos com o carro”; “Eu rego a casa com gasolina”; “Eu incendeio tudo!” Depois, deixou de atender. As ameaças continuavam a chegar por mensagem.

Não aceitava que os pais deixassem de lhe satisfazer as necessidades básicas. “Vocês hoje liguem para este número por causa de eu dormir e evitar estar fodidos, que eu fodo esta merda toda, que não vivem direitos até morrer. Julgas que vou viver na rua só por tua causa, isso é que era bom”, escreveu. “Não arranjem casa nenhuma para eu viver que eu fodo-te na rua”, escreveu também.

Os registos, coligidos pela polícia, desmontam a repetição: “Eu vou estar ali naquela rua de dia e de noite e se alguém aparece fodo-vos a todos”; “A casa vai pelos ares. Os vidros já foram, pois ninguém quer saber.” “Estou a cagar-me para a polícia. Que eu te apanhe na rua. Ficas sem pernas.”

Violência doméstica?

As ameaças ter-se-ão estendido à irmã, Sofia, de 25 anos. “Eu não quero carros parados naquela rua, senão chego-lhe fogo”, escreveu-lhe o irmão. Tinha medo que ele fizesse mal aos pais, ao companheiro, a si, e, depois, ao bebé de ambos, declarou à polícia, durante a fase de inquérito.

Detido a 27 de Novembro do ano passado, está desde então em prisão preventiva. O Ministério Público convenceu-se de que nenhuma outra medida de coacção o faria parar. “Sobretudo o crime de violência doméstica é de elevada gravidade”, corroborou o juiz. “Trata-se de um crime que frequentemente tem consequências letais para as vítimas, pelo que é gerador de forte alarme social e de sentimento de insegurança.”

Com o advogado que lhe foi atribuído pelo apoio judiciário, foi até ao Supremo Tribunal sustentar que a sua prisão era ilegal. Para haver violência doméstica, as supostas vítimas teriam de ser “pessoas particularmente indefesas, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabitassem”. Negou os factos, alegou já não viver com os pais, questionou a sua vulnerabilidade.

“Quando se fala de violência doméstica, pensa-se em violência contra as mulheres”, concebe a procuradora Teresa Morais, falando não sobre este caso concreto mas sobre a violência contra idosos em geral. “Cabem na tipificação legal deste crime os idosos, mas não todos.” Basta que o agressor não more na mesma casa, mas na casa ao lado, para que o crime seja outro. E o que é uma vítima particularmente indefesa? “Será que este conceito aberto não acaba por ser restritivo?”, questiona.

Está enquadrada no crime de violência doméstica a agressão praticada por namorado, ex-namorados, ex-companheiros e ex-cônjuges. “Por que não estabelecer aqui a mais forte, a mais exigente e a mais definitiva relação de parentesco?”, questiona ainda a magistrada, referindo-se à filiação. Repesca a ideia expressa pelas Nações Unidas de ter em conta “qualquer relacionamento onde haja uma expectativa de confiança”.

Os pais de Filipe tiveram de entregar atestados médicos para fazer prova de vulnerabilidade. Fernanda tem retinite, uma inflamação da retina no olho, e atrofia do nervo óptico. Não consegue ler. Não é capaz de usar um telemóvel. E Amaro sofre de hipertensão maligna, uma via para complicações cardiovasculares. Em vez da desejada tranquilidade da velhice, o sobressalto.

O processo começou por ser apenas referente aos pais. O Ministério Público acabou por incluir a irmã, que até há pouco morou na mesma casa. Daí tê-lo acusado, no dia 2 de Fevereiro deste ano, de três crimes de violência doméstica, três crimes de coacção agravada, 13 crimes de ameaça agravada, dois de perturbação da vida privada.

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