“Estigmatizamos os pobres em vez de estigmatizarmos a pobreza”

O pretexto era mais uma campanha de venda de velas, neste Natal, para angariar fundos. Mas Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas Portuguesa, falou sobretudo do país, da pobreza infantil, daquilo onde, na sua opinião, nunca se devia cortar. “As crianças e os mais velhos não dão lucro. Na óptica desta economia são despesa.”

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“Se as crianças são menos saudáveis, vamos ter mais encargos com saúde; se são mais revoltadas, vão ser mais anti-sociais” Enric Vives-Rubio

Ironiza um pouco: “O sistema capitalista tem tido um mérito muito grande.” Um mérito que joga a favor do próprio sistema, “claro”. E que mérito é esse? “Põe os pobres contra os pobres. É o povo que aponta o dedo. E os mais populistas aproveitam esta forma de estar...” A entrevista a Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas Portuguesa, acontece no mês do Natal, quando nas mesas da sede da Cáritas, em Lisboa, se multiplicam velinhas de todas as cores — destinadas a serem vendidas em mais uma campanha de angariação de fundos, num ano em que a pobreza infantil está em destaque em muitas das iniciativas típicas da época. Uma em cada três crianças portuguesas está em risco de pobreza ou exclusão social.

O que é ser uma criança pobre em Portugal?
É não ter possibilidade de fazer o número de refeições que se considera que são necessários. Temos crianças que, se não fosse a escola ou alguma Instituição Particular de Solidariedade Social em que estão, não teriam acesso a uma refeição digna. Para muitas, a única completa do ponto de vista dos nutrientes é a que recebem na escola ou na instituição. Depois, é não ter acesso a cuidados de saúde que são determinantes para superar doenças que se podem tornar crónicas. E não ter acesso a todos os recursos educativos que a generalidade das crianças têm. Quando digo recursos digo material escolar, apoio escolar para reforço das aprendizagens. Porque uma criança se não é bem alimentada, se dorme em condições precárias, tem um risco acrescido de contrair doenças e de insucesso escolar. Outro risco ainda é um que não estamos a acautelar devidamente e que está a tomar proporções próximas daquelas que existiam antes do 25 de Abril: o abandono escolar.

Acha que está a aumentar?
Está a aumentar. Por causa das carências económicas, da falta de recursos, mas também devido ao paradigma com que as crianças se confrontam: estar numa turma, perguntarem-lhes se trouxeram o computador, a maior parte levantar o braço e haver dois ou três que não levantam... Para esses dois ou três isto não cria vontade de ir à escola. Por outro lado, há crianças que já trazem consigo uma história, de pobreza geracional, e a escola não tem conseguido saber ser um espaço de integração. Pelo contrário, é um espaço de competição. E estas crianças são resilientes a muitas coisas, mas não são resilientes a uma competição que apela a um esforço cognitivo, que envolve também num esforço emotivo... a nossa escola não está projectada para atender personalizadamente a cada um destes casos.

O ambiente é hoje mais desfavorável para as crianças?
Não é hoje. É há muito. Simplesmente agora veio ao de cima porque o que tem fomentado isso colapsou. O sistema económico e financeiro que nos orienta só valoriza o que dá lucro, põe em primeiro lugar o que tem preço. E as crianças e os mais velhos não dão lucro. Na óptica desta economia são despesa. Aliás, na óptica de muitos governos, os investimentos que se fazem na educação, na saúde, na segurança social são despesa. E não se consegue ter o alcance político de perceber que podendo ser despesa num tempo concreto, vão ser, no futuro — e usando a mesma linguagem capitalista —, lucro.

Se as crianças são menos saudáveis vamos ter mais encargos com saúde, se são mais revoltadas, vão ser mais anti-sociais, e isso paga-se... Há muitos anos, um economista calculou o que um jovem gastou ao Estado numa só noite, a partir de um assalto que fez. Gastou mais nessa noite ao Estado do que se se tivesse investido na sua educação, nos primeiros anos de vida. Gastou no carro que assaltou, na montra que partiu, na fuga, no atropelamento que fez e, eventualmente, por ter ficado ferido com danos irremediáveis que o tornaram para sempre um dependente da sociedade... Esta sociedade capitalista quer resultados, quer os máximos resultados num curto prazo, e não previne.

Nos últimos três anos tem havido cortes significativos...
Há uma parte que compõe a troika, a dos nossos parceiros europeus, que é a mais inflexível. A Europa hoje traiu o ideal dos seus fundadores, é comandada por dois ou três países economicamente mais seguros — até ver —, e não tem sido nada solidária com os países periféricos. A crise bateu forte nestes países, nalguns, é verdade, por governação desgovernada — porque não foram todos responsáveis pela crise, não digam que foram todos porque não foram!

Todos os cidadãos?
Sim. Quando se diz que a culpa é de todos, não é verdade!

Essa ideia vem geralmente acompanhada de outra: a de que o país tinha todo que empobrecer um bocadinho...
Ideia perversa. Não foi isso que aconteceu com esta crise. A riqueza de alguns continuou a aumentar, continuou a aumentar o número de ricos.

Eu compreendo que a dívida tem que ser aliviada. Agora, primeiro que a dívida estão as pessoas. Quando veio o memorando e se percebeu que ele foi construído com bases não realistas (porque uma parte da dívida não estava identificada), este Governo devia ter imposto à troika uma revisão imediata... O memorando devia ter sido revisto, a dívida deveria ser paga num maior espaço de tempo e com taxas solidárias — porque estas taxas impostas pelo Banco Central Europeu são altamente injustas, não estão a baixar a dívida, estão a aumentar a dívida. E, pelos vistos, não estão satisfeitos porque querem exigir que países como a Grécia e Portugal cumpram mais medidas de reajustamento económico. A Grécia já reagiu — foi sempre mais indisciplinada e com isso teve sempre mais benesses. Espero que Portugal não ceda. Porque o orçamento que está previsto para 2015 já é bastante penoso. Numa altura de crise, de fragilidade como a que estamos a viver, nunca se deve mexer naquilo que pode criar alguns equilíbrios. Ter reduzido as prestações sociais...

 ...E continuar a reduzir. Foi anunciado, por exemplo, uma nova poupança com a criação de um tecto às prestações que impeça que as famílias acumulem demasiadas prestações e apoios sociais...
Muitas vezes os governantes têm informações que lhes são dadas por assessores mas que... Tem-se falado muito no Rendimento Social de Inserção (RSI), tem sido altamente contestado, o Governo foi à boleia de uma ideia desfavorável que a sociedade gerou à volta do RSI, porque o RSI “é para malandros”, porque “cria dependências”... O sistema capitalista tem tido um mérito muito grande — a seu favor, claro: põe os pobres contra os pobres. E é o povo que aponta o dedo. E os mais populistas aproveitam esta forma de estar...

Então, é a favor do tecto ou não?
Não sou! Não sou a favor de um tecto para o RSI, nem para o abono, não. Isso são trocos. Sempre me incomodou a agressão contra o RSI quando o Estado gastava muito mais dinheiro em subsídios de desemprego fraudulentos e baixas fraudulentas. O RSI nunca foi para acabar com a pobreza, foi para aliviar a agressividade da pobreza. Mas mesmo assim conseguiu libertar algumas pessoas da pobreza. Por que é que não se põe um tecto às pensões? Àquelas pessoas que têm duas e três pensões diferentes, todas elevadas...

As chamadas reformas douradas?
Exactamente. Eu não consigo perceber este argumento, que até é defendido pela esquerda, de que o dinheiro que o Estado tem é dessas pessoas porque elas descontaram. Não vejo os descontos dessa forma. Eu desconto para o bem comum e se tenho possibilidade de auferir maior vencimento terei de fazer mais descontos (embora se exagere muito nos descontos sobre os rendimentos do trabalho e menos sobre os rendimentos do capital). Senão estamos a aceitar que aqueles que descontaram pouco têm que ter poucos benefícios do Estado e há muitos que, por razões diversas, de saúde, de desemprego, se calhar já gastaram tudo o que descontaram. Não têm direito a mais nada? A grande frente de batalha que temos de ter nos próximos tempos é falar mais de bem comum (não é o mesmo que bem colectivo, porque o bem colectivo favorece o privilégio de determinados sectores). O bem comum é todos termos acesso àquilo que os direitos humanos consagram.

Depois, para resolvermos o problema da pobreza temos de repensar o trabalho.

As remunerações?
Mas também da distribuição do trabalho existente. Quisemos uma sociedade tecnologicamente mais evoluída. Portanto temos de repensar o trabalho, distribuir o existente por mais pessoas aumentando o número de horas de trabalho. E há aí muitas potencialidades.

A Cáritas tem mecenas importantes?
Não tem muitos. Tem alguns. Mas tem sido mais o povo a auxiliar.

Acabou há dias uma grande campanha, chamada Toca a Todos, promovida pelo grupo RTP, contra a pobreza infantil, que vai beneficiar a Cáritas com dezenas de milhares de euros... Para que projectos vai o dinheiro?
A Cáritas foi escolhida porque já tem um projecto que se chama Prioridade às Crianças. Teve início quando comecámos a perceber que as crianças estavam a ser retiradas dos ATL’s, dos infantários porque os pais não podiam pagar. Depois começámos a perceber que havia crianças com problemas ao nível auditivo e visual que ainda não tinham sido identificados. Hoje ajudamos a pagar parte dos rastreios, a pagar infantários, creches e ATL’s, tratamentos de saúde, material escolar.

No total, ajudam quantas pessoas?
Só temos estatísticas das Cáritas Diocesanas — mas ainda temos 4350 paróquias onde os pobres se podem dirigir e esses números não temos. Mas nos atendimentos diocesanos, de Janeiro a Setembro, contabilizámos mais de 54 mil famílias (109 mil pessoas).

Há mais ou menos casos?
Nalgumas zonas do país, efectivamente, tem vindo a baixar os novos casos. Noutras tem aumentado, porque as pessoas perdem o subsídio de desemprego... O que nos preocupa mais é que dantes as pessoas vinham pedir ajuda e diziam: “Eu vou superar isto. Ajudem-me agora que eu vou superar.” E agora dizem: “Eu não vou sair disto.”

Diz-se que o país está já numa fase de recuperação...
Aqui ainda não se sente [...]. A maior parte dos nossos recursos têm sido canalizados para a dimensão assistencial. Assistencial, não é assistencialismo.

E qual é a diferença?
Os políticos e os jornalistas deviam ter muito cuidado com os termos. Assistencialismo é ajudar as pessoas sem a preocupação de as libertar das causas que fazem com que elas precisem de apoio. Agora, eu posso fazer assistência na perspectiva de fazer com que a pessoa salte do fosso da pobreza e isso é uma forma de intervenção social. Custava-me muito ouvir pessoas dizer, acusando o Governo de assistencialista, que “era preferível dar a cana a dar o peixe”. Mas onde é que estavam as canas? Se nós tivéssemos esse discurso perante pessoas que nos vinham pedir comida para não perder a casa... o onde é que estavam as canas? As pessoas morriam de fome?

Creio que muitos dos que fazem essa crítica ao Governo estão a referir-se ao facto deste ter cortado em algumas prestações monetárias, como o RSI, para apostar em cantinas sociais...
Aí estou de acordo. É uma incoerência. Agora, o Governo não pode ser acusado de ser assistencialista [só] porque criou as cantinas sociais — embora eu tenha algumas dúvidas quanto à forma como se pôs em prática o programa de emergência alimentar. Tivemos aqui [na Cáritas] uma experiência boa, de tickets restaurante, que depois veio a ser complementada pelo Grupo Jerónimo Martins, que nos facultou bastante dinheiro nesses tickets, que permitiam às pessoas fazerem as compras, escolher. Com as cantinas sociais as pessoas não cozinham em casa. A mulher fica desempregada, o homem fica desempregado e ficam também sem ter o que fazer em casa. E têm que comer o que lhes é dado... as cantinas sociais surgiram por causa da pobreza envergonhada. E estou convencido que não resolveram problema nenhum de pobreza envergonhada. Há uma história: disseram-me que todos os dias ia um senhor num carro topo de gama a uma cantina social de uma Cáritas, levantar as refeições. Fui indagar.

Era verdade?
Era. É um alto quadro de uma empresa, um engenheiro, que vai todos os dias buscar aquilo. Mas é para um vizinho dele, não é para ele. Quando sai da empresa, passa pela Cáritas... Isto também mostra como é preciso ter cuidado com os julgamentos, com os pre-juízos que fazemos da pobreza. Há uma revolução que se tem de fazer em Portugal: tem de haver uma estratégia de combate à pobreza e esta não pode estar só na Praça de Londres [onde está sediado o Ministério do Trabalho e da Segurança Social]. Tem de estar no ministério da Economia, da Educação, da Justiça... Depois, a luta contra a pobreza toca a todos, não pode ser só responsabilidade do Governo, tem de ser das empresas, por exemplo. A revolução a fazer é, primeiro, antes de mais: educar as pessoas para fazerem o verdadeiro combate à pobreza, porque o que se tem feito muitas vezes é o combate aos pobres, culpando os pobres.

Uma vez encontrei-me com uma pessoa que foi professora, que andou não sei quantos anos com contratos precários, de terra em terra, o seu vencimento nunca foi grande coisa... até que ficou desempregada. Explicações? Não havia, os pais não pagavam. Ela dizia-me: “Vou lavar escadas.” Mas isso também diminuiu muito. E eu disse-lhe: “Vou ajudar-te para teres acesso ao RSI.”

E ela?
Começou a chorar. “Não quero.” Expliquei-lhe que o RSI era um direito, dada a situação. E ela disse: “Não, não quero que digam que vivo à custa do Estado.” Criou-se esta ideia e muita gente não recorre o RSI. Temos pobreza envergonhada porque estigmatizamos os pobres em vez de estigmatizarmos a pobreza.

Porquê?
Temos muito preconceitos. Muitas vezes, os pobres têm que se vestir, e ficar sem se lavar dois ou três dias, e serem irreverentes, para que quem os atenda acredite que são mesmo pobres. É assim. Há muitos anos, na minha região, Setúbal, houve uma crise grave. Foi nos primórdios desta minha loucura sã que é estar com os pobres. Atendi, então, uma jovem mãe que me vinha pedir leite em pó para o seu bebé. Nunca mais me esqueço disto. A senhora vinha bem pintada, bem arranjada. E eu, a primeira coisa que lhe disse, foi: “Olhe a senhora agora tem que ter prioridades.” Porque nós mandamos na vida dos pobres. “Veja lá, não gaste mal o dinheiro!”

Eu hoje já não faço isto, claro. Primeiro tenho que saber a história da vida, as condições de vida... mas na altura era muito inexperiente e fui pela lógica dominante: “A senhora tem que estabelecer prioridades, se calhar não gastar tanto dinheiro em cosméticos...” E estava a dizer isto quando ela se levantou da cadeira e gritou: “Já não quero nada!” E começou a chorar. Parece que estou a ver aqueles olhos todos mascarrados. Disse uma coisa que eu nunca mais me esqueci: “Deixe-me parecer aquilo que eu já não sou.” E foi-se embora. E não quis o leite. Esta [história] ainda me pica a consciência. Mas nunca mais fiz tal coisa. Foi uma aprendizagem.

Claro que para haver direitos tem de se cumprir deveres. Mas não podemos ter preconceitos. Temos de saber o que se passa com as pessoas...

E tem que haver fiscalização...
Tem que haver sobretudo educação. E não chamemos retrógados àqueles que reclamam o ressurgir de valores que parecem esquecidos e que são muito necessários.

A campanha anual “Dez Milhões de Estrelas”, que este ano tem como objectivo vender mais de 1 milhão de velas, é importante nas contas da Cáritas?
É importante nas contas. E é importante para dar um sentido diferente ao Natal. Ao [abrigo] da campanha têm-se feito manifestações públicas pela paz, colóquios, há uma exposição sobre a pobreza infantil a percorrer o país, portanto, isto não é só vender velas. A vela custa um euro. É muito para uma vela tão pequenina. Mas isso significa que esta vela tem valor. O preço é o preço da solidariedade. 65% fica em cada diocese para se atender às necessidades das famílias carenciadas... e 35% é entregue à Cáritas Portuguesa e todos os anos escolhemos um país, uma causa. Este ano vai ser para as crianças que estão nos campos de refugiados, no Médio Oriente.

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