“Estavas, linda Inês, posta em sossego...”

Mal refeitas da desilusão e da afronta, fomos, com quem nos entende e nos respeita, institucionalmente, pedir Justiça.

Em memória de Maria Alzira Lemos, Madalena Barbosa e Ana Vicente, que sempre nos animam e cuja voz nos falta.

“Estavas, linda Inês, posta em sossego,

De teus anos colhendo o doce fruito,

Naquele engano d’alma ledo e cego,

Que a Fortuna não deixa durar muito,

(...)”

Luís de Camões, Os Lusíadas, canto III, estância 120.

 

... quando,

subitamente, te vieram dizer que a tua vontade de pouco valia, que eras mesmo incapaz de ter vontade se não fosses ajudada a construí-la, e que quem te podia ajudar vinha embuçado que não tinhas nada que saber quem se andava a meter na tua vida nem porquê, que a ti só te cabia obedecer, e que o melhor era estares muito agradecida e mesmo pagar qualquer coisita a quem perdia tempo com a tua humilde pessoa, que já estavas a dar muito trabalho e grande prejuízo à Pátria por não te conformares em cumprir as tuas obrigações, afinal a razão última para que nasceste e te criaram. E que isto era apenas o começo, que não se foge ao destino, e o teu era morrer pela tua rebeldia e por não teres sabido que há regras, nem demonstrar que uma mulher não se pode atrever a levantar a cabeça ou mesmo a voz, se ela for dissonante do que é suposto ser, e, assim, a querer ser mais do que é, e sempre foi e será. Mesmo com o amor de um príncipe. Sobretudo, quantas vezes, para que esse amor não se assuste e fuja, que nisto de amores nada é certo neste mundo.

Pois assim estávamos nós, ainda que nem sempre lindas mas postas no sossego da confiança nas instituições que ajudamos a eleger, naquele engano d’alma ledo e cego de que éramos cidadãs livres e iguais em dignidade e direitos, neste ano da República de 2015, cerca de setecentos anos após Inês mas no País de Inês, rainha de Portugal depois de morta.

Quando...

... subitamente, nos vieram dizer que a nossa vontade de pouco valia, que éramos mesmo incapazes de ter vontade se não fossemos ajudadas a construí-la, e que quem nos podia ajudar vinha embuçado que nós não tínhamos nada que saber quem se andava a meter na nossa vida nem porquê, que a nós só nos cabia obedecer, e que o melhor era estarmos muito agradecidas e mesmo pagar qualquer coisita a quem perdia tempo com a nossa humilde pessoa, que já estava a dar muito trabalho e grande prejuízo à Pátria por não se conformar em cumprir as suas obrigações, afinal a razão última para que nascemos e nos criaram. E que isto era apenas o começo, que não se foge ao destino, e o nosso, se fosse preciso, era morrer pela nossa rebeldia e por não termos sabido que há regras mais fortes e poderosas do que as leis, e que é preciso mostrar a toda a gente que uma mulher, diga o que disser a respeito a Constituição da República, não se pode atrever a levantar a cabeça ou mesmo a voz, se ela for dissonante do que é suposto ser, e assim a querer ser mais do que é, e sempre foi e será. E se insistir, há-de pagar por isso em sofrimento e euros, e toda a gente que queira há-de saber quem ela é. Foi assim, este verão, na Assembleia da República, cerca de 700 anos depois de Inês, no Portugal de Inês. Ainda e apesar. Ao grito gritado de “vergonha”, ao grito em silêncio do nosso desespero no espanto incrédulo do “como foi possível?”, nos disseram, com a superioridade tolerante de quem se entende iluminado, com a tonitruância de quem sabe o que pode e não aguenta o que lhe custa ouvir, que era por bem e pela “equidade social”, que isto não tinha nada a ver com o resultado do referendo de 2007, que nem pensar, pois não, que nem pensar, que o crime não voltava para a lei, então para quê tanto alarido e despropósito. Que não custava nada, que eram só 3 pequenos ‘comprimidos’ que nos haviam de curar de vez, que era só a democracia a funcionar e, que, afinal, eram a maioria eleita e por isso mandavam porque sim. E que para provar o erradas que estávamos acerca da maldade da mudança, até nos davam, a todas, na mesma vezada e em troca de nós mesmas, outras coisas muito boas, como estudar e trabalhar aos bocadinhos, cheias de modernidade e de internet, para ficarmos no descanso do lar a ter muitos meninos e muitas meninas, que são precisos braços e cabeças para o trabalho, e gente a descontar para a segurança social, e a pagar impostos, e a votar, feliz, a sua servidão. E, para as que quisessem mesmo a IVG, entre aconchegos às ‘coitadas’ sempre pensadas e tratadas “outras”, entre devassas muitas e diversas, também davam umas “ajudas monetárias ou em espécie”, e mais umas “remoções” porque talvez. E mais o mais que se, adiante se veria.

E assim fomos tiradas do sossego da confiança e do engano d’alma ledo e cego da cidadania para metermos na cabeça e no coração que nisto do controlo social e do controlo do Estado sobre a capacidade reprodutiva das mulheres - onde começa e acaba todo o controlo sobre elas - é coisa muito séria que há que recuperar por lei enquanto é tempo de maioria garantida, com pena de exclusão e de ferrete mesmo que já sem crime, em nome da boa ordem das coisas, e que tudo e o mesmo é certo neste mundo.

Por isso, mal refeitas da desilusão e da afronta, mas cidadãs que se sabem e se assumem livres e iguais em dignidade e direitos e assim querem ser, estar, permanecer, continuar, legatárias de Novas Cartas Portuguesas, que nos inspiram e que não nos falham, fomos, com quem nos entende e nos respeita, institucionalmente, pedir Justiça.

Mas o tempo pesado que nos impuseram e que de nós exige uma firmeza nova é um tempo também de outras opções. Estará este povo de homens e mulheres - cuja participação directa e activa na vida política constitui, nos termos do artigo 109º da Constituição, condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático - disponível para apoiar quem não reconhece as mulheres como pessoas iguais e livres, a quem nada impede de identificar com incubadoras utilitárias, dispensáveis noutros voos que o tempo é de crise, que entende que connosco se não for a bem vai a mal, que acha que para quem é, não há Constituição nem é preciso? Há-de vir quem diga que são miudezas de mulheres e que o importante não reside em nós, pretensiosas, a julgar que sim. E eu digo, que o que parece nada é tudo, porque este parecido nada subverte o Estado de direito democrático. E lembro, que o artigo 115.º n.º 3 desta esquecida Constituição que contra tudo ou quase nos defende diz, que só pode ir a referendo questão de relevante interesse nacional. E que portanto reside em nós o importante sim. Mesmo que a causa tenha sido outra. E que quem foi capaz de maltratar mais de metade da população chamando-lhe incapaz “por natureza” e humilhando-a na sua dignidade – porque, queiram ou não reconhece-lo, todas somos destino deste agravo - quem foi capaz de fazer o que fez, não é de confiança, nem merece, como se nada, prosseguir. 

Em breve saberemos quanto valem e o que podem as mulheres em Portugal, o que querem para si próprias, para as suas filhas e para as suas netas, qual o nível de auto estima em que se encontram, que desconfortos e violências estão disponíveis a suportar em defesa da igualdade. Ou do que insistem julgar ser o seu sossego. Saberemos se querem recusar a submissão quando, agora e de novo por lei, as obrigam a ela. Saberemos da sua fibra e da sua real autonomia como eleitoras conscientes, 40 anos depois do fim da discriminação legal que então sofriam as portuguesas também em matéria de sufrágio. E saberemos quanto delas gostam e o que delas querem os homens do seu País. Saberemos.

Jurista, ex-Secretária de Estado para a Igualdade

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