“Estamos a mascarar o trabalho infantil com um ensino supostamente vocacional”

Ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues diz que os novos cursos vocacionais são “trabalho infantil encapotado” e que o “défice de qualificação de adultos” é “um obstáculo” ao crescimento do país.

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Maria de Lurdes Rodrigues diz que aguardará com "serenidade" o desfecho Nuno Ferreira Santos

Apesar do que falta fazer, tem “orgulho” na escola pública construída depois do 25 de Abril. A ex-ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues organizou uma obra com artigos de investigadores e ex-governantes, na qual se olha para 40 anos de políticas de educação em Portugal. O primeiro volume é apresentado nesta quarta-feira, numa cerimónia que conta com, entre outros, David Justino, Artur Santos Silva, Guilherme d'Oliveira Martins e Eduardo Marçal Grilo. A antiga governante encara com naturalidade quem a critica: “Estamos em plena democracia.”

No livro, depois de olhar para 40 anos, fala sobre o futuro das políticas de educação e encontra cinco grandes desafios: concretização da escolaridade obrigatória, unificação das vias de ensino na escolaridade, autonomia e organização pedagógica das escolas, educação e formação de adultos, e avaliação e regular e sistemática do impacto das políticas de educação. Porquê estes temas?
Estão sempre presentes no nosso sistema de ensino. E neste momento enfrentamos alguns desafios que se relacionam com esses tópicos. Por exemplo, não chega ter instituído a escolaridade obrigatória, é necessário garantir que todos os alunos aprendem, que têm um percurso escolar de êxito. A questão da unificação das vias de ensino é diferente. Como temos um elevado nível de insucesso escolar, somos muitas vezes tentados por soluções que não o são. Resolver o problema do insucesso, enviando alunos para empresas ou arranjando um sistema de ensino dual que retira a possibilidade de os jovens fazerem uma escolaridade básica longa é uma via que compromete o futuro dos jovens e do país. Apesar de todas as dificuldades, devíamos continuar a apostar no sistema unificado de ensino e numa escolaridade básica unificada, tão longa quanto possível, no nosso caso de nove anos. Isso devia ser discutido. Já a educação de adultos foi uma área em que a mudança falhou. Não fomos capazes de construir um sistema de formação ao longo da vida, baseado na escola, na certificação das competências e dos conhecimentos escolares. Não fomos capazes de ter políticas de continuidade sustentáveis que nos ajudassem a superar o défice de educação de adultos.

A certa altura no livro diz que “é preciso contrariar a tentação de definir cedo de mais o destino dos jovens, encaminhando-os para vias vocacionais marginais”. Uma das críticas do Conselho Nacional de Educação aos novos cursos vocacionais [de dois anos e dirigidos para quem vai para o secundário] prende-se com o facto de poderem ser feitos não apenas num modelo integrado, metade escola e metade local de trabalho, mas na totalidade numa empresa ou num centro de emprego. Também não vê com bons olhos este caminho?
Não vejo eu e não vêem muitas pessoas. Por isso é que devia ser um tema debatido e consensualizado. Com os níveis de abandono que temos, tem sido muito difícil concretizar a escolaridade básica de nove anos, é um problema. Mas a solução não é encaminhar os alunos do insucesso para as empresas ou para vias que são marginais. Isso é uma via de facilidade que vai comprometer o nosso futuro e o dessas crianças. Eu ainda vivi as políticas públicas de combate ao trabalho infantil. Os nossos jovens começavam a trabalhar com 12, 13, 14 anos e nós lutávamos contra isso. O país investiu imensos recursos em políticas de combate ao trabalho infantil. E agora estamos a mascarar o trabalho infantil com um ensino supostamente vocacional? E desde quando é que as empresas têm vocação de ensinar? A instituição que o país criou para ensinar e acolher os jovens foi a escola, não as empresas. As empresas têm outras missões, podem ajudar a escola, podem ter estágios, mas não podem ser responsabilizadas pela educação das crianças. Vamos voltar a um trabalho infantil encapotado. Isso é muito negativo. Não estou a invocar que tenho razão, mas há outros portugueses a pensar como eu. É um debate que divide a sociedade portuguesa.

É por isso que na obra diz que, a partir de 2011, a execução do programa de ajustamento orçamental justificou medidas que, sem debate, consenso ou compromisso, contrariam princípios estabelecidos na Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) e na Constituição? Os novos cursos vocacionais são uma dessas medidas?
É um exemplo, há outros. Como o facto de não haver uma oferta formativa para educação de adultos. Não há nada. Diminuiu-se de tal forma o serviço público na área da educação ao longo da vida que não há rigorosamente nada. É evidente que está consagrada na LBSE a necessidade da oferta pública de educação de adultos também.

Refere-se ao facto de se ter descontinuado o Programa Novas Oportunidades?
E de não ter sido substituído por nada.

Aliás, no livro identifica a educação e formação de adultos como uma área em que “falhou a mudança nos últimos anos”. Diz mesmo que este défice de qualificação constitui “um obstáculo ao crescimento económico do país”, com “impactos negativos no desenvolvimento social”…
Neste momento estamos com um défice de qualificação de adultos de todas as idades. Quando desenhámos o Programa Novas Oportunidades, existiam na população activa 500 mil jovens com menos de 24 anos que não tinham o 9.º ano ou o secundário. Passaram nove anos, estes jovens terão hoje 30 e poucos anos... Se não tiverem uma oportunidade de qualificação, vamos ter de esperar muito tempo para que a demografia resolva [o problema]. Entretanto, perdemos essas pessoas como recurso altamente qualificado. Pelo facto de termos um défice de qualificações e pelo facto adicional de termos tido, durante muitos anos, um elevado insucesso escolar, precisamos de encarar a qualificação dos alunos como uma prioridade absoluta para o crescimento económico e para o desenvolvimento social do país. O facto de termos menos crianças e menos jovens a entrar na escola é uma oportunidade, porque temos os professores, temos as escolas, temos as instituições, temos os recursos, podemos afectá-los a essa prioridade.

Apesar de tudo, entende que, passados 40 anos, podemos ter “orgulho” na escola pública construída em Portugal?
Absolutamente. Não tenho dúvidas sobre isso. O país pode orgulhar-se. Nunca tivemos tantos excelentes alunos, em termos relativos e absolutos. Tantos alunos excelentes, tantos a investigar. Esses alunos são produto no nosso sistema de ensino. São já filhos do 25 de Abril. Isso é revelador de que o sistema de ensino funcionou completamente: equitativo, justo. Com falhas, com certeza. Mas funcionou e nós temos de nos orgulhar do que realizámos. Não apenas do que não realizámos.

Como reage às críticas, já veiculadas em blogues da área, como A Educação do Meu Umbigo e Atenta Inquietude, segundo as quais este livro pretende justificar opções políticas do seu mandato ou que, depois de terminarem funções, os ex-titulares de cargos passam a ter uma visão muito clara sobre a área que tutelaram?
Com naturalidade. Felizmente vivemos em democracia e as pessoas podem criticar-me. Pior era não poderem emitir a opinião. Mas pelo facto de terem exercido cargos públicos, as pessoas não estão impedidas de explicar e apresentar uma opinião, uma visão dos problemas do país. Estamos em plena democracia.

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