Escutas telefónicas por “dá cá aquela palha”?

O eterno conflito entre a vontade de esconder e a vontade de saber.

A violação do segredo de justiça em Portugal é “residual, face ao total dos inquéritos criminais a ele sujeitos, não se confirmando, pois, a proclamada sistemática violação do segredo de justiça”, segundo a auditoria determinada pela procuradora-geral da República e de cujo relatório tivemos conhecimento público na semana passada.

Para além desta importante conclusão, o trabalho realizado ao longo de um ano traz-nos um exaustivo levantamento das eventuais violações de segredo de justiça durante os anos de 2011 e 2012 no nosso país, analisando porquê, quando e como foi decretado o segredo de justiça e quem o requereu, quais os crimes em causa nos inquéritos criminais onde foi decretado o segredo de justiça, a sua duração e outros aspectos processuais. Um trabalho louvável e necessário para nos permitir, de algum modo, sabermos do que é que estamos a falar.

O relatório debruça-se também, com minúcia, sobre o regime legal dos mais diversos segredos existentes em Portugal: segredo de dados pessoais, sigilo bancário, segredo fiscal, segredo militar, segredo médico, segredo de jornalista e segredo religioso entre outros. Compreensivelmente, não fala dos segredos de amor, que, no entanto, são tão  relevantes no nosso pais.

O relatório faz também um útil levantamento sistemático da legislação em vigor sobre o segredo de justiça em Espanha, França, Itália, Alemanha e Reino Unido. Estranhamente, contudo, parece não ter tomado em conta o excelente trabalho sobre a mesma matéria da autoria do professor Fernando Gáscon, da Universidade Complutense de Madrid, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (https://www.ffms.pt/estudo/23/o-segredo-de-justica). Trabalho que tem uma vantagem: para além da descrição do que está escrito nas leis nos diversos países (law in books), refere, também, a sua aplicação prática, isto é, como é que os tribunais aplicam as leis, pelo menos quanto a alguns casos mais relevantes (law in action). Porque, quando se fala de leis, e em especial sobre segredo de justiça, o mais importante é perceber como é que as mesmas são aplicadas ou, sobretudo, não aplicadas. Em todos os países do mundo, existe o conflito entre a “vontade de esconder” das autoridades e a “vontade de saber” da opinião pública e, muitas vezes, o segredo de justiça é, apesar das leis, um segredo de polichinelo.

O actual regime legal do segredo de justiça no nosso país parte de um princípio geral de publicidade dos processos e do seu conteúdo, apenas com uma proibição geral da publicação da identidade das vítimas de crimes de tráfico de pessoas, sexuais e contra a honra e a vida privada. O segredo de justiça só deve ser decretado em processos em que os interesses da investigação ou dos intervenientes processuais o justifiquem. E é positivo saber-se, através do relatório, que a maioria das pessoas e entidades contactadas se pronunciou a favor da manutenção do actual regime de segredo de justiça, em que a publicidade do processo é a regra e o segredo a excepção.

O relatório identifica, ainda, os três momentos em que se concretizou, nos processos analisados, o maior risco de fuga de informação que devia ficar sob reserva: a realização de buscas, o interrogatório judicial de arguido detido e os comunicados de imprensa, sendo que estes são da responsabilidade das próprias autoridades policiais.

É no capítulo final – “Propostas” – que o relatório se revela mais susceptível de crítica. Não porque não faça numerosas sugestões válidas, mas porque apresenta, de forma acrítica, três ou quatro sugestões extremamente gravosas para os nossos direitos fundamentais, tais como passarem a ser possíveis escutas telefónicas para investigar o crime de violação de segredo de justiça ou poderem ser feitas buscas às casas dos jornalistas ou às redacções, sem os condicionalismos actuais. Ou ainda a possibilidade de ser aumentado o número de matérias criminais que passariam a estar legalmente em segredo de justiça.

Ora, o segredo de justiça, embora esteja consagrado na nossa Constituição, é, ainda assim, um direito instrumental, que visa, essencialmente, garantir a eficácia da investigação criminal e, também, a presunção de inocência e o bom nome dos cidadãos. Confrontado com a liberdade de expressão e o direito à informação, só deve prevalecer quando houver um risco sério de prejuízos para tais interesses e valores, como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem – completamente ignorado no relatório... – tem afirmado.

Escutas telefónicas e raides-surpresa nas redacções para investigar um crime que se reconhece como residual e cujas consequências negativas nunca foram avaliadas parece realmente desnecessário e até perigoso. Pode, mesmo, criar um espírito de cruzada para erradicar o “jornalismo de sarjeta” ou outro qualquer. Como é evidente, todo o cuidado é pouco.

Advogado

 
 
 
 
 
 

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