Escrevo como aprendi, porque aprendi com quem sabia

Para a Dra. Maria Alice não existia “um erro sem importância” — um erro era um erro e a Dra. Maria Alice não tolerava erros.

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Sinal no acesso às Faculdades de Letras e Ciências de Lisboa

1. A Dra. Maria Alice era o terror do meu colégio. Quando a Dra. Maria Alice assomava ao fundo do corredor, que o vagar do seu passo fazia interminável, a algazarra tornava-se murmúrio, o rebuliço serenidade fingida e ia-se a esperança de que aquele fosse enfim o dia da sua primeira “falta”.

Na ponta oposta do corredor ficava a Sala 1. A Dra. Maria Alice dava aulas na Sala 1 mais ninguém dava aulas na Sala 1 e ela não dava aulas em nenhuma outra. A Sala 1 era “A Sala da Dra. Maria Alice” e a Dra. Maria Alice era “A Professora de Português”.

A Dra. Maria Alice era severa e carrancuda. As únicas paixões que lhe conheci foram o ensino, o rigor e a Língua Portuguesa. Para a Dra. Maria Alice não existia “um erro sem importância”  um erro era um erro e a Dra. Maria Alice não tolerava erros. Quando algum se apresentava, a punição imediata fazia com que não tornasse. Mas os bons resultados eram premiados com presentinhos livros, claro pagos pelo bolso próprio. Ainda guardo um.

Nos “pontos”, a Dra. Maria Alice usava uma escala de classificações peculiar que incluía “Óptimo”, “Péssimo” e “Recuso-me a ler isto”. Nas aulas, a Dra. Maria Alice não se limitava a dizer “é assim” a Dra. Maria Alice explicava porque é que era assim, ensinando-nos a génese de cada palavra a partir da sua raiz latina ou grega; e mais tarde isso facilitou sobremaneira a nossa aprendizagem de outras línguas. Ensinou-nos, também, que “parvo” vem do Latim, “Parvus, Parva, Parvum”, e significa quem o diria! pequeno. “Pequeno de espírito”, costumava ela repetir pensando certamente em alguém, “pequeno de espírito”.

A Dra. Maria Alice não tinha idade; acho que foi sempre velha. Era velha quando me tornei seu aluno, assim ficou enquanto minha professora e velha permaneceu até morrer. A Dra. Maria Alice nunca se casou e, como Brás Cubas, não teve filhos, não transmitiu a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. O que a Dra. Maria Alice alcançou foi ensinar Português correcto a incontáveis gerações. Essa foi a sua herança.

2. Em prol da memória da Dra. Maria Alice, agradeço ao PÚBLICO por não enveredar pelo caminho do “menor esforço” que está a conduzir à destruição da Língua Portuguesa e ao aumento da iliteracia criando situações deploráveis onde escritores consagrados por um Nobel celebram “patos” com o Diabo e sinais de trânsito proíbem a passagem “exeto” para (ironia das ironias) acesso à Faculdade de Letras e à Faculdade de Ciências.

Escusando-se a adoptar o “Acordo Ortográfico” de 1990, que não é “Acordo” (porque um acordo pressupõe a concordância de todas as partes) e não é “Ortográfico” (porque a palavra grega “orthós”, como a Dra. Maria Alice nos ensinou, significa “direito” e este pseudo-acordo é uma ode à tortuosidade, à incoerência e à pequenez de espírito), o PÚBLICO está a preservar o legado de todos os professores e professoras que foram como a minha hoje querida Dra. Maria Alice.

Bem hajam!

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Engenheiro

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