Escola pública não garante mobilidade social nem dá garantias de ensinar os alunos a ler e a contar

A escola pública deixou de funcionar como “veículo” de mobilidade social. Tornou-se “criminosa, indigna e estúpida”. E a culpa, aponta Maria Filomena Mónica, autora de um livro sobre as salas de aula que é lançado nesta quinta-feira em Lisboa, é dos sucessivos ministros. “O melhor que tinham a fazer era começar por deixar os professores em paz”, aconselha

Foto
Muitas das intervenções da Parque Escolar em escolas públicas ultrapassaram os custos inicialmente previstos Enric Vives-Rubio

Há miúdos que ameaçam fisicamente os professores, alunas que são iniciadas no haxixe pelos próprios pais. Há disputas com telemóveis, contínuos que receiam os alunos. Há portões de escola que mais parecem “chaminés de fábrica”: “Hoje em dia um charro é tão comum como um cigarro nas escolas”, descreve uma aluna.

Há professores que gastam aulas a gritar e que depois desistem. E que, além de directores de turma, são classificadores de exames, coordenadores de disciplina e distribuidores do serviço lectivo e que, por isso, se desgastam em reuniões que lhes roubam tempo para as salas de aula. E há frases como esta, proferida por uma professora que, ao fim de páginas de diário em que dá conta da sua frenética batalha, desmorona: “Não tenho uma posição optimista face ao futuro das escolas públicas. Bem pelo contrário, temo que estejamos a assistir, a muito curto prazo, à sua decadência total”.

A socióloga Maria Filomena Mónica andou meses a procurar resposta para a pergunta "O que se passa dentro das nossas salas de aula?" e as respostas que obteve, a partir dos diários de duas professoras, quatro alunas e uma mãe, confirmaram os seus piores receios. “É uma escola criminosa, indigna, estúpida. Que não suscita a curiosidade para aprender, que não ensina as crianças a pensar. Nesse sentido, a escola tornou-se um desperdício de dinheiro”, diagnosticou ao PÚBLICO, a propósito do lançamento dos livros A sala de Aula e Diários de Uma Sala de Aula, que decorre esta quinta-feira, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, ambos editados pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Para evitar mal-entendidos, a socióloga esclarece à partida que estudou a escola pública porque a quer melhor. “Os pais que não se convençam que aquilo só se passa nas escolas públicas. Conheço miúdas das privadas que me fariam relatos igualzinhos ou piores”, ressalva. E o que nos mostram os relatos que se estendem por aquelas centenas de páginas é o de uma escola de massas que perdeu a oportunidade de funcionar como “elevador social” das classes mais desfavorecidas. “Nos anos a seguir ao 25 de Abril, acreditava-se que a escola devia servir de instrumento de mobilidade social. A prova de que isso não funcionou é que continuamos com a maior taxa de desigualdade social da Europa: o rendimento médio dos 20% mais ricos é sete vezes superior ao dos 20% mais pobres, enquanto a média europeia é de quatro”, argumenta.

O pior é que nem enquanto transmissora do “saber ler e contar” a escola está a cumprir o seu papel. “A cultura que os alunos adquirem ao longo de 12 anos é má. Há a ideia de que a escola tem de dar coisas que os alunos compreendem facilmente, como as telenovelas, os discos da Taylor Swift ou os livros do Harry Potter. Simplesmente para isso eles não precisam da escola. Eles vão lá por si. E o resultado é que muitos dos jovens que frequentam a escolaridade obrigatória mal sabem ler e muito menos interpretar o que lêem ou construir frases com sujeito, predicado e complemento directo”, acusa a socióloga.

Não diziam palavrões nem cuspiam para o chão
Para ajudar a perceber como se chegou a este ponto, a socióloga recua várias décadas. Em 1926, havia cerca de 63% de analfabetos. Esses eram os tempos em que apenas 13% dos jovens permaneciam na escola após a quarta classe e em que os alunos “não diziam palavrões, não cuspiam no chão e mal levantavam os olhos quando eram chamados ao quadro”. Em 1974, a taxa de analfabetismo tinha descido aos 35% mas continuava a ser a mais elevada da Europa. Muitos alunos deixavam a escola aos nove, 10 anos. As universidades eram “uma ilha frequentada por privilegiados”. Quando o Estado Novo ruiu, nem as escolas nem os docentes foram preparados para acolher os alunos até então estranhos à escola. Hostis a regras, pouco propensos a qualquer tipo de actividade intelectual, postos perante professores “habituados a ensinar os filhos das classes médias”. Com o ministério da 5 de Outubro a debitar consecutivamente “leis, decretos e portarias que ninguém entendia, pela simples razão de que não eram inteligíveis”, a deserção das classes médias para o ensino particular que se seguiu “agravou os problemas”.

Pelo meio, algumas estatísticas animadoras: “Entre 1991 e 2001,  o abandono da escola por crianças com idades entre os 10 e os 15 anos, ou seja, do 5.º ao 9.º ano do básico, baixou dos 13% para os 3%. Mas mesmo isto, segundo a autora, deriva quase só “das preocupações do Ministério da Educação com a posição do país nas tabelas internacionais”.

Em 2011, porém, a taxa de abandono precoce em Portugal continuava a ser de 23,2%, contra uma média europeia de 13,5%. Colocada em perspectiva, a ideia de se prolongar a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano, apresentada dois anos antes, em Agosto de 2009, pelo então primeiro-ministro, José Sócrates, “nasce da verificação de que é melhor ter os jovens na escola do que na rua”, segundo Filomena Mónica.

“Em 30 anos passamos de uma situação em que a 'mortalidade escolar' tinha lugar aos 10 anos, porque as crianças tinham de ir trabalhar, para outra em que os alunos são obrigados a ficar na escola até aos 18 porque não têm onde trabalhar”, sintetiza a socióloga. Que não discorda do princípio. “A mudança em si podia ser boa se esse grau de ensino fosse bem organizado, isto é, se houvesse, no caso do ensino vocacional, empresas que pegam nos alunos, como se faz na Alemanha. Mas é utópico pensar-se que vai haver aqui ensino vocacional como o alemão. Portanto, desconfio que este alargamento serve apenas para tirar estes miúdos das ruas e das estatísticas do desemprego e, mais uma vez, por causa das estatísticas internacionais”. No fundo, ergueu-se “mais um andar sobre um edifício “em vias de colapso”.

Os culpados, segundo Maria Filomena Mónica, “são todos os ministros que se sucederam na pasta depois de 1974”, porque “foram eles, e não os professores, que não souberam enfrentar o problema da massificação da escola; foram eles, e não os professores, quem elaborou os programas; e foram eles, e não os professores, quem levou as classes médias a retirarem os filhos do ensino público”.

Sem soluções prontas a aplicar, Maria Filomena Mónica aconselha o ministro Nuno Crato a deixar de tratar os professores “como uns estafermos incapazes”. “O que está a acontecer com a escola de massas é a proletarização da profissão docente e uma tentativa, caída de cima, de robotizar a profissão, com os professores a tentarem sobreviver, ignorando sempre que podem, e podem pouco, os disparates que caem de paraquedas, directamente do ministério”. Por acreditar que os professores precisam de se sentir acarinhados “quer pelo poder quer pela sociedade”, a socióloga considera que o melhor que Nuno Crato podia fazer pela escola pública era deixar os professores em paz. “Deixá-los preparar lições, dar aulas e corrigir os exames dos alunos, em vez se os pôr a preencher relatórios que não servem para nada”.

Sugerir correcção
Comentar