Ensino superior público: entre o refluxo da procura e as carências de formação, um enorme diferencial por detrás do atraso português

Ou assumimos que as universidades e politécnicos são também instrumentos de política regional, servindo para combater as iniquidades entre litoral e interior, ou cavaremos ainda mais tais desequilíbrios no país.

No final deste Verão, os resultados das colocações de alunos na primeira fase do concurso de acesso ao ensino superior público (ESP) lançavam campainhas de alarme: o número de candidatos (40.419) foi o mais baixo desde 2003 (41.662). Logo aí se levantaram vozes sobre um excesso de oferta no ESP, que estaria alegadamente desajustado face ao declínio demográfico da população e às necessidades do país, e sobre a necessidade de se repensar, redimensionar e reorganizar a mesma. No final da terceira fase, apesar de mitigado, o problema permanecia. Mas, afinal, há ou não um excesso de oferta no ESP? E quais são as causas do refluxo na procura?

Sobre o alegado excesso de oferta no ESP vale a pena termos presente alguns dados. Segundo o Education at a Glance, 2013, da OCDE, Portugal tinha, em 2011, cerca de 15% de diplomados entre a população com 25 e 64 anos de idade. No mesmo período, o valor equivalente (em média) para a OCDE era de 32% e para a UE21 de 29%. E para o ensino secundário completo (12.º ano ou equivalente), os dados são os seguintes: 17%, para Portugal, 44%, para a OCDE e 48% para a UE21. E os números revelam também que não há um excesso de gastos: em 2010, os gastos médios per capita, em dólares americanos ajustados por paridades do poder de compra, eram de 8882, para o secundário, e de 10.578 para o ensino superior e a ciência (5843 sem a investigação/ciência), em Portugal, e de 9014 e 13.528 (9274 sem a ciência), para a OCDE, e 9471 e 12.856 (8734 sem a ciência), para a UE21. Mais, desde o início do programa da troika os cortes na Educação têm sido brutais (DN, 28/10/2013), reforçando muitíssimo os atrasos de Portugal nestes domínios. Tendo em conta estes défices de formação da população portuguesa, seja em geral, seja sobretudo nos escalões etários mais elevados, e os gastos médios per capita, falar em excesso de oferta nos serviços públicos de Educação, sobretudo superior mas não só, é de uma imensa desonestidade intelectual.

Então quais serão as causas do refluxo da procura no ESP entre 2010 e 2013 (PÚBLICO, 8/9/13)? Claro que há, em primeiro lugar, a questão do declínio demográfico, um problema que devia preocupar-nos a todos e que deveria merecer políticas ativas para o combater, em vez de apelos à emigração e da criação de condições cada vez difíceis para o emprego dos jovens (e, consequentemente, para o estabelecimento de novas famílias). Mas, além de tal fator ser de per se quantitativamente insuficiente para explicar o refluxo na procura do ESP (PÚBLICO, 7/10/13), a verdade é que, tendo em conta os défices de formação dos portugueses, tal efeito deveria ser anulado pelas carências de formação existentes. Em segundo lugar, tendo em conta que durante os governos Sócrates (I e II), houve um claro aumento no número de candidatos ao ESP (entre 2005 e 2010, o número de candidatos passou de 38.976 para 51.842), temos de concluir que fatores de curto prazo têm de estar também por detrás deste refluxo da procura.

Claro que a crise económica e as dificuldades que esta cria às famílias e aos seus filhos são um fator a ter em conta. E talvez por isso o refluxo tenha começado (ligeiramente) logo em 2009. Mas, por outro lado, as orientações políticas do Governo em funções são também um aspeto crucial a ter em conta. Sejam os apelos à emigração, seja a contração do emprego público, contraindo as oportunidades para os mais jovens e para os mais qualificados, estarão também por detrás do fenómeno. Além disso, o aumento da jornada de trabalho e da idade de reforma, para lá de contrair as hipóteses de emprego para os jovens, dificulta muito a requalificação da população ativa: as pessoas não só têm cada vez menos condições financeiras para estudar, têm também cada vez menos tempo, e daí o refluxo acrescido nos cursos ministrados em regime pós-laboral. Finalmente, a desvalorização do estudo, seja pelo exemplo do facilitismo (relembremos o caso de Miguel Relvas), seja pela desvalorização dos salários das classes médias assalariadas (ou seja, das profissões científicas e técnicas, mais qualificadas), será também fator a ter em conta para explicar o refluxo da procura. Poderão ainda ter existido problemas relacionados com certos exames especialmente difíceis que estejam por detrás do refluxo da procura em certos cursos, como, por exemplo, a Engenharia. E, finalmente, há que ter em conta que muitos destes fatores são especialmente agravados no interior, ou seja, nas regiões com menor dinamismo demográfico e socioeconómico, logo é normal que tenham maior impacto no interior. Mas aqui, tal como nos outros domínios, há que ter em conta que ou assumimos que as universidades e politécnicos são também instrumentos de política regional, servindo para combater as iniquidades entre litoral e interior, ou cavaremos ainda mais tais desequilíbrios no país.

Concluindo: não há em Portugal, comparando com os nossos parceiros da UE e da OCDE, nem excesso de gastos no ESP (e no secundário), nem excesso de formação superior (e secundária), que permitam quer explicar algum refluxo da procura no ESP, quer alegar excesso de capacidade instalada no ESP. O que há é uma enorme crise económica que dificulta o acesso das famílias ao ESP, bem como orientações políticas erradas que, em vez de se centrarem na recuperação do atraso português, preferem centrar-se na desvalorização do estudo e do emprego qualificado, e nos apelos à emigração, além de favorecerem o ensino privado. Por exemplo, no meio de toda esta crise, o Governo consegue arranjar mais dinheiro para as escolas secundárias privadas e menos para as escolas públicas, convivendo alegremente com liceus públicos literalmente a cair (vide o caso do Liceu Camões) ou com inúmeras escolas pelo país sem aquecimento e sem professores colocados várias semanas depois do arranque do ano letivo. E, no ESP, prossegue-se com a política de corte brutal, com os apelos e incentivos explícitos aos despedimentos (corte de 3% na massa salarial), com a destruição das carreiras e dos seus incentivos meritocráticos (um sine qua non para um ESP de qualidade), com as cada vez menores oportunidades para os jovens (só pode haver novas contratações, concursos e promoções se houver um corte de 3% na massa salarial). Ou seja, tudo apostas políticas erradas que hipotecam o futuro do país.

Politólogo, professor do ISCTE-IUL (andre.freire@meo.pt)
 
 
 
 

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