Enorme generosidade ou pequena loucura?

A oferta de 200 jipes Honda aos trabalhadores perturbou a Lousã

Muitos se lembrarão ainda do insólito acto de generosidade anunciado nos jornais no início deste século: um industrial da Lousã pretendia oferecer um jipe Honda a todos os trabalhadores das sociedades de que era sócio, isto é, entre 150 a 200 jipes. O representante da marca na zona ainda chegou a celebrar um contrato promessa e a receber um cheque a título de sinal. Mas preferiu não o depositar porque dois irmãos e um sobrinho do industrial se opuseram e avançaram para tribunal com uma acção de inabilitação do mesmo. Isto é, pretendiam que o tribunal nomeasse um curador a fim de administrar o seu património uma vez que, segundo diziam, sofria de uma anomalia psíquica – psicose maníaco depressiva grave/doença bipolar – que o impossibilitava de reger por si só a sua pessoa e bens.

A acção entrou em tribunal ainda no ano de 2000 e o generoso industrial contestou as afirmações dos seus familiares, reconhecendo que padecia de uma doença de foro neurológico hereditária, do tipo “psicose” mas que isso não o impedia de exercer de forma proveitosa e bem-sucedida a sua actividade de industrial, pelo que não padecia de anomalia psíquica que o impedisse de reger a sua pessoa e bens. Mais esclareceu que sempre fora contido nos seus gastos quotidianos mas seguira o caminho do seu pai, sendo um filantropo e benemérito, tendo após o 25 de Abril de 1974 oferecido uma bicicleta a todos os seus funcionários, adquirido e reconstruído o edifício para uma associação de recuperação de cidadãos inadaptados da Lousã, impulsionado a Fanfarra dos Bombeiros Voluntários locais, a quem fazia um donativo anual e, ainda, emprestava os seus terrenos para o Clube de Rugby; quanto aos jipes que pretendia oferecer aos seus trabalhadores mais não visava do que recompensá-los pelo seu esforço e dedicação.

Procedeu-se ao seu interrogatório no tribunal e a um exame pericial, o qual concluiu que o estado psicopatológico apresentado pelo industrial em causa, “que lhe vem condicionando a capacidade de gerir/e ou dispor dos seus bens, deverá relevar para efeitos de requerimento da sua eventual inabilitação/interdição por anomalia psíquica”.

Entretanto o industrial morreu em 2005 mas os familiares requereram que o processo continuasse para determinar se se justificava ou não a inabilitação e desde quando estaria incapaz de administrar os seus bens. O processo só chegou a julgamento em 2011 e o tribunal de primeira instância considerou que a generosidade e a filantropia do industrial em causa não resultava de uma qualquer doença e que, apesar da patologia que sofria, a doação dos jipes visava, de facto, recompensar os trabalhadores.

Recorreram os familiares para o Tribunal da Relação de Coimbra que, em finais de 2014, valorizando de forma diferente os testemunhos médicos, lhes deu razão, reconhecendo a existência de uma situação de incapacidade que justificava a sua inabilitação por anomalia psíquica, retirando-lhe a possibilidade de praticar, por ato próprio e sem autorização de curador, actos de disposição de bens entre vivos e fixou o início da incapacidade no ano de 1995. Porque a lei o permite, o advogado do industrial, apesar do mesmo já ter morrido, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) defendendo que o seu ex-cliente estava a ser vítima do estigma de que, sofrendo de doença afectiva bipolar como sofria, as suas decisões – designadamente as generosas intenções de dádiva a que se reportava o processo – eram o efeito de um episódio de crise da sua doença, o que não se tinha provado.

O STJ, pela pena e cabeça dos juízes conselheiros Silva Gonçalves, Fernanda Isabel Pereira e Pires da Rosa, analisou aprofundadamente a questão e concluiu, no passado dia 19 de Novembro do anos passado, que se era certo que tinha havido actos de altruísmo praticados pelo industrial em causa que eram conformes aos usos sociais, por serem praticados por uma pessoa de avantajados rendimentos, também era verdade que, tomando na devida conta o valor da despesa que resultaria da doação dos jipes Honda a todos os trabalhadores das sociedades de que era sócio, bem como a sequência temporal de todas as dádivas de que o tribunal tomara conhecimento o levavam a pensar que todos aqueles actos “de duvidosa filantropia” se entrecruzavam numa “movimentação de insanidade mental” que justificava a avaliação feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra de que o industrial em causa sofrera de “singular patologia mental” que consubstanciava uma anomalia psíquica a determinar a inabilitação que, assim, confirmaram.

A questão subjacente e fascinante a este processo é a de sabermos o que é uma anomalia psíquica e, sobretudo, o que é uma anomalia psíquica que justifica a intervenção do Estado contra a vontade do anómalo, já que, para o bem e para o mal, anómalos somos todos nós...

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