Em que língua brincam os filhos dos imigrantes russos e ucranianos?

Russos e ucranianos desenvolveram um projecto para que os filhos, nascidos em Portugal, aprendam a língua dos pais e não se esqueçam de onde são.

No sol frio de Dezembro, o pátio da antiga escola básica de Sernadelo, na Mealhada, é percorrido por risos e palavras estranhas a quem passa na estrada. No intervalo das aulas, brinca-se em russo e em ucraniano, e não é por ser sábado – ou por virem de uma semana de aulas na escola regular – que os garotos hesitam quando Tatiana Shevchenko, a professora de nacionalidade russa, avisa que a pausa acabou.

Assim que ela chama, os alunos regressam às secretárias e concentram-se nas tarefas. Tatiana não vê razão para espanto: "Isto não é um passatempo, vêm aqui para aprender", diz. Timur, de quatro anos, tem a cabeça inclinada sobre a mesa, que é alta de mais para o seu corpo miúdo – sem levantar os olhos do papel, desenha o alfabeto num caderno de duas linhas. Maria, que aos seis anos de idade chorava na escola porque não sabia uma palavra de português, tem agora 11, está no 6.º ano e escreve uma composição sobre o Inverno, para praticar o ucraniano. Sérgio, de seis anos, filho de uma portuguesa e de um imigrante da Ucrânia, aprende as primeiras frases na língua do pai. As crianças são "voluntárias", tal como a professora, na Escola de Fim-de-Semana, um projecto lançado há quatro anos por um grupo de russos e ucranianos e pela Câmara Municipal da Mealhada, através do Centro Local de Apoio à Integração de Imigrantes.

"O meu nome é Sérgio. O nome do meu irmão é Alexandre. O nome da minha mãe é Susana" – de olhos nos olhos da professora, à procura de aprovação, Sérgio ainda fala como quem recita, num russo vacilante. Tatiana aprova, com um sorriso e palavras de incentivo. Sérgio frequenta esta escola especial há pouco tempo e é um dos 15 alunos que se distribuem por duas salas. Não há um número fixo ou condições prévias: daqui a uns meses podem ser 18 e a seguir 13; da Mealhada e de concelhos vizinhos; de diferentes idades; em diversos níveis de aprendizagem e a quererem aprender russo ou ucraniano, línguas suficientemente semelhantes para que "quem fala uma entenda a outra na perfeição", explica Tatiana.

Enquanto a aula decorre, no pátio da escola os pais de alguns dos alunos aguardam, pacientes. Admitem que o conhecimento da língua será útil aos filhos, caso um dia regressem aos respectivos países, mas afirmam que não foi isso que os levou a aderir ao projecto.

O sentimento de urgência em relação à promoção das línguas dos países é anterior à crise. Para o explicar, Velodimir Yurchuk, de 33 anos, motorista de profissão, conta uma história semelhante à de outros pais. Quando o filho mais velho, Artur, que agora tem nove anos, entrou para o infantário, aos três, foi um sofrimento, porque o bebé não percebia uma palavra de português. Ultrapassar essa fase obrigou a que os pais passassem a falar em casa "a língua que ele falava na escola". E, de facto, Artur aprendeu o português. Tão bem que, passados anos, os pais se aperceberam de que a situação se invertera. Quando falavam russo ou ucraniano, o filho não os entendia e pedia-lhes constantemente que traduzissem para português.

"Acontece com todos: um dia, estão ao telefone com os avós, querem dizer qualquer coisa e não sabem. Imagina o que sentimos? E o que sentem os avós? Pensamos: 'Não pode ser – os nossos filhos têm de saber falar a nossa língua, têm de saber de onde são'", diz Velodimir. Olga Manko, mãe de dois rapazes que frequentam a escola de fim-de-semana, sente o mesmo. Diz que fala melhor português do que os filhos ucraniano. "Eles só aqui, aos sábados, estudam a minha língua, enquanto eu estudo o português com eles todos os dias, quando os ajudo com os trabalhos de casa. Costumo dizer que já tenho o 3.º ano [do primeiro ensino básico]: aprendi a escrever, gramática e até a construir textos em português".

A história de Maria é ligeiramente diferente da de Artur. Também nasceu em Portugal, mas problemas familiares, tinha ela poucos meses de idade, fizeram a família regressar à Russia, de onde só voltou aos seis anos. "Entrou na escola em Dezembro – não entendia nada do que ouvia, chorou todos os dias, semanas seguidas. Mas, quando a Primavera chegou, ela já estava a falar, a escrever e a ler em português", conta o pai, Hrymoriy Yemera. Até que chegou o dia em que percebeu que a filha deixara de saber escrever em russo, há cerca de quatro anos. Inscreveu-a na Escola de Fim-de-Semana – diz que a família não tem condições para competir com a escola portuguesa, onde as crianças "passam muitas horas".

Não foi difícil encontrar na Câmara Municipal da Mealhada quem entendesse a sua angústia. Tanto o vereador com o pelouro da Educação, Júlio Penetra, como o técnico, João António Silva, têm familiares emigrantes. "Lembro-me, nas férias, de brincar com os meus primos e sentir que eles vinham de outro mundo. Falavam outra língua e ficavam espantados com coisas que para nós eram banais, como os fósforos - em França, percebo agora, já deviam utilizar os isqueiros de cozinha", diz este último.

Não "fazer da escola um negócio"
O projecto nasceu nas instalações da câmara e, mais tarde, transferiu-se para a antiga escola básica, que foi remodelada para o efeito. "É muito fácil colaborar com esta comunidade – pedem muito pouco, não procuram subsídios. Organizam-se, cooperam, apresentam o trabalho feito", comenta. Velodimir, um dos pais que estão desde o início no projecto, explica que o segredo é não "fazer da escola um negócio". "Já tivemos várias professoras. Um dia, duas, quando sentiram que eram indispensáveis, propuseram passar a receber um ordenado. Dissemos às duas que podiam ir embora, obrigado: isto não é um negócio".

Até à chegada a Portugal, há 11 anos, Tatiana Shevchenko era professora do equivalente ao primeiro ciclo do ensino básico, pelo que o trabalho voluntário "é mais do que compensador", diz. "É aqui que eu venho buscar energias para aguentar uma semana no emprego". Ensinar "é um gosto". Para "ganhar dinheiro", trabalha numa fábrica de cerâmica onde é "escolhedora", o termo que designa quem separa peças numa linha de montagem. "Não é o que fazia antes, claro. As crianças estão em níveis muito diferentes, cada uma precisa de uma ajuda particular. Mas é emocionante voltar a ensinar", diz Tatiana.

É mais fácil trabalhar com os mais pequeninos, que ainda dominam as duas línguas. Sofia, de cinco anos, filha de Iryna Tyutyuryk, é um bom exemplo. Há um tempo, a mãe percebeu que, enquanto brincava, a criança se dirigia em português a umas bonecas e em ucraniano a outras – conforme lhe tinham sido oferecidas num ou noutro país. "Não posso falar português com esta - não vês que ela não entende?", perguntou. Relaciona-se de forma semelhante com os livros. Sem saber ler numa ou noutra língua, a garota consegue perceber em qual eles estão escritos, e é nessa que inventa histórias, a partir das ilustrações. "E diz: 'Estou a ler português'. Ou 'estou a ler ucraniano'", conta Iryna.

A professora afirma que, mesmo para os que falam as duas línguas, as três horas de aulas semanais, ao sábado, são fundamentais. No período em que estão na escola básica de Sernadelo, encerrada por escassez de crianças do ensino regular, as do Leste europeu não falam português – mesmo entre elas, no recreio ou quando passeiam, para aprender o nome das plantas, o dos frutos do Outono. Tatiana procura promover a literatura, o artesanato, a História, o teatro, a música, os paladares dos países de origem dos pais das crianças. Algumas conhecem-nos. Outras não.

Na escola para aprender
"É tão bonito! As montanhas e os rios são maiores, as cores são mais fortes, há neve e as casas são muito engraçadas, parecem casas de livros de histórias", descreve Catarina Juldashev, de 10 anos. A mãe, Halyna Motovilska, sorri: nunca teve possibilidades de levar a filha à Ucrânia, que ela conhece da Escola de Fim-de-Semana, das descrições feitas pelos pais e das imagens da Internet. Catarina Bogodyst e Maria Vegena, de nove e 11 anos, que têm ido ver as respectivas famílias, nas férias, confirmam que a Ucrânia "é mais ou menos assim".

As três raparigas conheceram-se na escola de línguas e preferem-na à outra, que partilham com os portugueses. Acham que os colegas não gostam delas, "por as professoras gostarem muito" delas. "Não faço de propósito: porto-me bem. Aquilo, na sala de aula, às vezes parece uma guerra e eu fico sentada e calada, só a olhar – é só isso", explica Catarina Juldashev, que anda no 5.º ano. Catarina Bogodyst tem o mesmo problema, mas se à primeira os colegas andam sempre a perguntar como está "o tempo lá em cima", por ser a mais alta da turma, à segunda chamam "Cocodisto", num trocadilho com o apelido. Catarina Juldashev encolhe os ombros: "Não gosto, mas pronto". Bogodyst põe um sorriso malandro: "Eu corro atrás deles, furiosa". E eles? "Alguns fogem!"

Os pais desvalorizam. "São crianças – estas sabem que estão na escola para aprender, que devem respeitar os adultos e os colegas, ser humildes e trabalhar", enumera Halyna. Velodimir também não alimenta as queixas das raparigas e diz que "as russas e ucranianas fazem asneiras, como os portugueses". "Só que sabem que na escola têm de se esforçar para ter um bom futuro. É uma questão de cultura", diz.

Para comprovar que as crianças são felizes em Portugal e consideram este o seu país, chama o filho: "Gostavas de viver na Ucrânia?" A pergunta apanha o rapaz de surpresa. Artur hesita, depois sorri, embaraçado e diz que não, que prefere Portugal, embora goste de "ir lá nas férias".

Velodimir Yurchuc sorri. Comenta que num momento em que os próprios portugueses emigram, também lhes passa pela cabeça sair de Portugal. "Mas, como pais, encaramos a situação com a mesma dificuldade: fazê-lo é desenraizar as crianças. Os nossos filhos nasceram aqui e de ucranianos já quase só têm os pais", comenta.

"Na Ucrânia as coisas não estão melhor"
De entre os pais que estão no pátio, a aguardar o fim da aula, nenhum está de malas feitas para regressar à Ucrânia, de onde saíram na primeira vaga de cidadãos de Leste que se instalou em Portugal entre 1998 e os primeiros anos do novo século. "Que iriamos fazer para lá? Na Ucrânia as coisas não estão melhor. O meu marido ainda agora conseguiu mais um contrato de seis meses e eu estou a receber subsídio de desemprego. Lá não teríamos nada", explica Iryna Tyutyuryk.

Os outros pais concordam, têm a sensação de que os europeus de Leste que retornam a casa o fazem por motivos familiares, como a doença ou a velhice dos pais, por exemplo, já que o desenvolvimento económico do país e a estabilidade política não justificam a opção. Dados oficiais confirmam que não é à custa da comunidade ucraniana que cresce o número de imigrantes que retornam aos seus países, supostamente empurrados pela crise. Os ucranianos, que formam o terceiro maior grupo de estrangeiros a residir em Portugal (com 33.790 pessoas, segundo os Censos de 2011) representam apenas 1,5 por cento dos 1790 que nos primeiros dez meses deste ano se candidataram ao Programa de Retorno Voluntário.

Ficar ou não, depende do que acontecer ao país de acolhimento, explicam, e sair de Portugal não significa regressar à Ucrânia ou à Rússia. Hrymoriy Yemera, pai de Maria, já conheceu outros países e admite regressar, sozinho, a França, para sustentar a família, se continuar sem emprego em Portugal, onde trabalhava como pedreiro. Diz que se sente bem no país. Tão bem, que comprou um terreno. "Infelizmente, a crise chegou antes da casa", diz, com um sorriso.

 
 
 
 
 

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