Em casa e no trabalho é a mesa que junta os Gorgulho

A comida é o centro da vida desta família algarvia. Marido e mulher trabalham no restaurante que é também do pai de Luís. Todos os dias, juntam-se à mesa a filha, o marido e o neto. Hoje temos arroz de polvo. É a quarta reportagem da série

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É à mesa do restaurante Alcatruz, nas ruelas interiores de Santa Lúzia, Tavira, que a família Gorgulho se reúne Miguel Manso
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Não haverá muitas famílias com uma sala de jantar como a dos Gorgulho. É uma sala deles, mas é também a sala temporária de muitos outros, que entram e saem para comer. Antes do virote habitual da “hora de ponta”, ao jantar, os Gorgulho sentam-se sempre à mesma mesa do restaurante Alcatruz, em Santa Luzia (Tavira), um espaço que já serviu de carvoaria e taberna.

A mesa de madeira, toalha aos quadrados vermelha, fica na “segunda sala” – assim, entre aspas, porque o restaurante está dividido em dois, com a cozinha à vista de todos ao centro, e cada sala com entrada por ruas diferentes. Há uma rede e há uma bóia de salvação na parede – a decoração inspira-se no mar e na pesca.

Longe da confusão dos restaurantes da fileira que fica junto à ria, o Alcatruz fica nas ruelas interiores da vila. O nome é uma homenagem aos alcatruzes usados para apanhar polvo, típico da zona, e acaba por ser também uma homenagem à profissão de Joaquim, 75 anos, pescador desde os nove.

Com Luís, o filho, 55 anos, e a nora, Cristina, 53 anos, Joaquim gere este restaurante que há 25 anos serve comida tradicional algarvia, sem toques modernos. Luís faz as contas, recebe e atende os clientes; Joaquim grelha o peixe e vai ao mercado de madrugada; Cristina está na cozinha a fazer iguarias como maionese de raia.

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Trabalham juntos desde 1989, todos os dias, menos à segunda-feira, e menos em Dezembro , altura em que estão fechados. Joaquim almoça e janta mais tarde, com os empregados, quando “acaba o serviço todo”. A mulher já está reformada, e fica em casa por razões de saúde. Luís é formado em Direito mas nunca exerceu. É também o criativo da casa, aquele que tem as ideias – a mulher executa-as.

A família que se junta à mesa diariamente é, então, Luís, Cristina, a filha Sandra, de 28 anos, o genro Carlos, 30, e o neto Pedro, 11 meses. Uma família que, da parte dos Gorgulho, é feita de filhos únicos há três gerações - até agora, porque nunca se sabe se Sandra não terá mais filhos. Joaquim anda sempre por perto, só às vezes se senta “quando não há nada que fazer”. Distinção entre trabalho e família? Não há. E aqui ninguém manda em ninguém.

Luís, explicando: "Se aparecer a GNR ou assim o meu pai é que é o responsável. Isto está em nome dele. Mas o meu pai chama-me sempre a mim para dar opinião".

A rotina não tira a surpresa, ou o gosto pelo que têm. O convívio diário é vivido pacificamente por todos, pelo menos assim o dizem. Vê-se que há uma certa admiração mútua. Sandra não se cansa da comida do restaurante, diz que há muita variedade, “não dá para cansar” da ementa. Joaquim, sem hesitação: "Não como melhor em mais nenhum lugar do que como aqui na minha casa". Prato favorito: "Vários, que sou de boa boca. Gosto imenso da cabidela de choco. Não enjoo".

Aviso a quem quiser um dia experimentar fazer esta cabidela: a tinta do choco tem que ser usada logo, no próprio dia, caso contrário fica com uma consistência que parece areia. "A cabidela de choco, que é arroz de choco com tinta, inventei eu, copiei de Itália", explica Luís. 

Viver do mar
Joaquim sempre viveu do mar, como já o pai dele vivia. “Desde que nasci”. Aos 18 anos foi para a pesca do bacalhau, para a Terra Nova e Gronelândia, a bordo do barco do pai de Carlos Paião, o cantor. A apontar para uma imagem na parede: "Vê aquele navio lá ao fundo? Era nesse".

Depois aos 55 anos reformou-se. Pescador é profissão de desgaste rápido.

Lamentando: "Podia ser uma reforma boa, mas naquele tempo descontava-se pouco, pagaram-me pouco. Já estava enjoado do mar, aborrecido do mar".

Chega ao restaurante o neto Pedro. O bisavô distrai-se com ele. Sandra, enfermeira, e Carlos, técnico de informática, também trabalham os dois no mesmo sítio, o Hospital de Faro. Ele é de Santo António dos Cavaleiros (Loures) e mudou-se para o Algarve, por causa dela, há sete anos.

Sandra pega em Pedro ao colo, e sorri: "Férias de Verão deram nisto".

A ele ainda custa a mudança, porque uma coisa são férias de Verão, outra é viver nesta pequena vila a dois quilómetros de Tavira, com cerca de 1500 habitantes, uma diferença substancial dos quase 26 mil habitantes de Loures. "Foi um grande choque", recorda Carlos.

Sente falta de confusão, e até de apanhar o metro e o autocarro.

- São aquelas pequenas coisas que antes eu odiava. O que sinto mais falta é a movimentação, a agitação. Apesar de ser um stress e de que toda a gente se queixar... E, claro, sinto falta da família e dos amigos. A mentalidade aqui também é diferente. Ao princípio sentia as pessoas muito competitivas no trabalho e não gostei muito.

Também não gostava tanto dos cozinhados da sogra. Estava habituado a outro tipo de comida: bife com batata frita.

- Quando comia coisas frescas não me sabia bem. Agora se comer um arroz de polvo aqui e comer outro que não seja tão caseiro já noto a diferença.

Cristina: "Ele não gostava de nada. Dava-lhe um bife de atum fresco e ele não gostava".

Luís: "As pessoas às vezes não sabem apreciar a comida. Estão acostumados a comer tão mal que quando apanham uma coisa boa pensam que não presta".

Carlos concorda com o sogro. Conta que tinha 15 anos e familiares em Santa Luzia quando Sandra e ele se conheceram, mesmo na casa em frente ao restaurante. Aliás, havia uma ligação entre as famílias que já vinha de trás.

Sandra:  "Esta casa foi comprada a familiares dele. É o destino!"

Além disso, o pai de Carlos conheceu Cristina em Angola, andou com ela ao colo.

Luíscontextualizando: "Muita gente em Santa Luzia ia para Angola, para a pesca. A seguir ao 25 de Abril, a vila aumentou uns 50%.

Carlos: "Os meus avós venderam a casa aqui em Santa Luzia e foram para lá".

Joaquim: "Grande parte de Santa Luzia vendeu as casinhas que tinha e foi para lá".

Alguém dá beijos a Pedro. Ouve-se Carlos a dizer: "Não apertes a cara".

Cristina viveu em Angola até aos 15 anos. O pai dela esteve lá uns 40 anos. Chegou o 25 de Abril de 1974 e voltaram. Ela tem memórias muito vivas. Da guerra também se lembra:

- Os tiros passavam por cima de nós.

Mas foi duro regressar a Portugal. Foi duro sair de um país onde “tinha as condições todas”. Chegou a Santa Luzia não tinha casa-de-banho, não tinha luz. 

- O meu pai deixou em Angola dois barcos, uma casa, e o dinheiro. Viviam bem. 

É a única dos três irmãos que vive em Portugal – um está na Venezuela, outro em Espanha. Cristina atravessa o balcão para desligar o lume do arroz de polvo. Prato mais típico aqui não há, dizem. Todos os barcos se dedicam à apanha do polvo. No tacho Cristina colocou cebolas, tomates, alho, louro, coentros, pimento, azeite e margarina para aveludar o arroz. O polvo junta-se congelado, cortado aos bocados, para garantir que não fica rijo. Mas junta-se ao refogado que foi batido com a varinha mágica, pouco depois de ter sido posto ao lume. Pode-se fazer o arroz branco à parte e juntar no fim quando o polvo estiver cozido. O toque especial “é a mão”.

- São muitos anos a cozinhar - diz Cristina.

Aprendeu aos 12 anos, com os pais. A mãe não podia trabalhar, o pai era cozinheiro que andava nos barcos.

Luís: "Ela não precisa de provar, faz e sai sempre bem. O segredo é tirar do polvo o próprio sabor. Está a perceber a essência da cozinha? Há muitos cozinheiros que deitam muitos ingredientes e isso depois tira o sabor da coisa".

Nesta cozinha os reis são os peixes. Pratos de carne são poucos, e os que há foram feitos mais a pensar nas crianças. É tudo tradicional, com receitas e produtos da zona.

Luís leva-nos a uma das salas do restaurante a ver a arca frigorífica, um aparelho na vertical, e com uma porta em vidro. Põe-nos a espreitar lá para dentro, mostra os peixes, mostra os mariscos, tudo comprado hoje. É Joaquim quem vai todos os dias ao mercado a Olhão. Chega lá pelas 7h00. Compra robalo, enguia, pargo, anchovas, todo o tipo de peixe, compra mariscos.

- Oriento o dia-a-dia. Pode sobrar um peixe ou outro, se sobrar fica para o nosso almoço do dia a seguir. Mas eu controlo. Esta casa sobrevive no dia-a-dia. O dia-a-dia é que é bonito: todos os dias é novidade. Se compro as coisas para uma semana não tem interesse nenhum.

No Verão, chega a comprar uns 40 a 50 quilos de peixe por dia, no Inverno fica-se pelos 12 quilos e “já está a festa feita”.

- Aqui há uns anos nesta casa pouca diferença fazia entre Inverno e Verão. Porque havia só quatro restaurantes, agora há 30.

Joaquim grelha o peixe segundo a técnica da “medida certa”. O truque é “não dar muita força ao grelhador”, para não queimar por fora e deixar cru por dentro. Mas o truque é também assar “conforme a qualidade”. De molho só precisam os peixes que não são gordos.

- Em princípio certos peixes não precisam de molho, o molho só vai estragar, porque vai saborear o molho em vez do peixe.

Enquanto o resto da família se senta para jantar, Joaquim segue para a cozinha para cortar o polvo. Não pára. Pedro, na cadeirinha, fica a uma das cabeceiras. Sandra conta-nos que vai ao restaurante todos os dias jantar. 

- A expressão da minha mãe é: 'Se faço para os outros porque é que não faço para ti?’ Eu aproveito - diz, a sorrir.

O convívio é importante, e a base de “isto, o restaurante, ter algum sucesso”, analisa.

- É um projecto que une várias gerações. Foram os meus pais que o iniciaram com os meus avós, e no fundo mantém a família. Cada um tem a sua função e lá vai resultando entre eles. Eu sou mais espectadora.

Luís: "Também ajudas de vez em quando. E ele [Carlos] também ajuda".

Sandra: "Desde pequenina que venho ajudar. Mas na cozinha não, a fasquia está muito elevada e isto não corre muito bem. Tento participar de alguma forma, em termos de pratos, de ideias".

Luís intervém a rir: "Ela diz que o pai é um bocado conservador. Quero manter a cozinha tradicional no orgânico, sem alterações, sem inovações para as pessoas provarem uma coisa que comiam há 50 anos".

Sandra: "Aqui é buscar o tomatinho à mercearia. Se estiver mais maduro o arroz sai de uma maneira, se estiver menos sai de outra! Eu tentei introduzir alguma coisa, algumas funcionaram, outras não".

A vida familiar gira à volta do restaurante, da comida (claro que falam de outras coisas), e é normal trocarem opiniões sobre outros restaurantes onde foram. Aliás, gostam de ir experimentar sítios novos nos dias de folga – e continuam, mesmo aí, a comer juntos. Não se largam. Em Dezembro, quando o restaurante fecha, vão os quatro juntos de férias. Já foram a Cabo Verde, Amesterdão, Itália, Grécia, França, Barcelona...

Os pais apoiaram a opção de Sandra pela enfermagem. Ela estudou em Lisboa e na altura não gostou: perdia muito tempo em filas, e fez-lhe confusão as pessoas quase não se conheciam, ser um dia-a-dia “impessoal”. Dedicar-se ao restaurante, tomar-lhe as rédeas, ainda não está nos planos.

- Ela está bem onde está - diz o pai.

Sandra, concordando: "É um grande esforço, empenho, suor de muitos anos que está aqui. Mas acho que eles não querem que eu me prenda aqui de forma muito activa, querem que eu invista na minha carreira".

Luís, Cristina, Joaquim passam quase 24 horas juntos. Como é?

Luís: "Estou no mesmo trabalho mas estou noutro sítio", diz, apontando para o balcão e para a outra sala.

Cristina: "A gente habitua-se, não é?".


Arroz de polvo, receita
Numa panela de pressão coloca-se duas cebolas descascadas, um pimento verde, tomate sem pele aos bocados. Junta-se um dente de alho, louro, bastante azeite, um pouco de coentros, um pouco de margarina. Põe-se ao lume uns minutos com um pouco de água. Tritura-se com a varinha mágica. Junta-se uns dois quilos de polvo congelado e cortado aos bocados, mais um pouco de água a cobrir, e coze uns 20 minutos. O arroz, cerca de 250 gramas para duas pessoas, pode ser cozido à parte. Junta-se no final, e deitam-se coentros picados.

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