Eles conhecem os símbolos do 25 de Abril mas confundem os factos

Cravos, liberdade e Grândola, vila morena... O PÚBLICO pediu a 84 alunos do 9.º ano que definissem o que sabiam sobre esta data. Do povo falaram muitos, de Salazar, alguns, da Guerra Colonial, muito poucos.

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Manuscrito de Tiago, aluno da Escola Secundária Bocage, Setúbal DR
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Manuscrito de Salvador, aluno da Escola Secundária da Cidadela, Cascais DR

Três turmas de 9.º ano aceitaram dizer ao PÚBLICO o significado do 25 de Abril de 1974. Sem aviso prévio e sabendo-se de antemão que este tema do programa ainda não tinha sido dado nas aulas, desafiaram-se alunos da Escola Secundária de Bocage, em Setúbal, e da Escola Secundária da Cidadela, em Cascais, a, em 15 minutos, escreverem o que sabiam sobre a data que se assinala nesta quinta-feira. Contou-se com a ajuda da professora Nazaré Oliveira e do professor Paulino Spínola, ambos a leccionar História. Ela há 27 anos, ele há 38.

“No 25 de Abril, o regime ditatorial foi derrubado e substituído pelo regime democrático. Após o 25 de Abril, a Junta de Salvação Nacional tomou algumas medidas: extinção da polícia política, abolição da censura, libertação de todos os presos políticos e permissão do regresso dos exilados”, Duarte (E.S. de Bocage)

“Eles têm uma ideia e a maior parte das vezes não é errada, mas há deficiências de pormenor. E alguns alunos são um pouco ‘trapalhões’”, diz Nazaré Oliveira, enquanto vai mostrando os textos escritos pelos alunos de Setúbal. Choca-a principalmente as poucas referências à Guerra Colonial. "Não têm em conta o que é mais importante para mim, que é a Guerra Colonial. Sou uma jovem ‘culturalmente feita em África’. Vim de Moçambique em Julho de 1974.” Veio para passar férias com os avós, e os pais já não a deixaram voltar.

“Depois começou a guerra civil lá, em Lourenço Marques (actual Maputo). Já não pude ir. Fiquei triste, perdi os meus amigos.” Estava no antigo 6.º ano, vinha de um bom colégio em Moçambique e agora tinha de se adaptar ao Porto, “muito provincianismo, parecer mal usar calções ou ir ao café”.

Disse numa aula de Moral e Religião: “Não estou surpreendida com a revolução porque mais tarde ou mais cedo os povos têm direito à sua independência. O que eu fui dizer…”, conta. E elogia o professor, que era padre e se tornou bispo, D. Joaquim. “Só ele é que entendeu. E vi que os meus colegas não tinham bagagem nenhuma.” Mas não admite que hoje os jovens saibam tão pouco sobre o assunto.

“Foi neste dia que ocorreu a revolução que mandava abaixo o regime salazarista e onde seria implantada a República. Um marco importante na História de Portugal”, Maria (E.S. de Bocage)

“Estamos a sentir uma certa iliteracia cultural e histórica. Porque os programas de ensino não estão bem feitos e porque os pais não falam com os filhos sobre estas questões”, diz a professora, e pergunta que pais são estes. “Com filhos destas idades, os pais terão entre 45 e 55 anos. O que é que se passa com eles, que não falam aos filhos do significado da Grândola, vila morena? Que não explicam por que é que o 25 de Abril é feriado? Que não falam com os filhos quando há determinados incidentes, como o da bandeira nacional ao contrário? Porque não se aproveita pequenos momentos do dia-a-dia para fazer desse mesmo dia um dia didáctico, de forma aligeirada mas transmitindo conhecimentos? Um exercício de pedagogia activa?”

“O 25 de Abril foi a queda do Estado Novo. Antes do 25 de Abril havia um grande descontentamento em Portugal. Nesse dia, houve uma grande revolução que foi um êxito. O povo distribuiu cravos vermelhos pelos soldados, que os colocaram no tubo das espingardas”, Marta (E.S. da Cidadela)

O professor Paulino Spínola, da Escola Secundária da Cidadela, lembra que “os miúdos só falam desta matéria no 6.º ano, quando têm 11/12 anos” e “não sentem que o assunto tenha que ver com eles, não se interessam, acham que não lhes diz respeito, habituaram-se a viver em liberdade”.

Ficou bem impressionado com “a quantidade de palavras que os alunos escreveram” em resposta à pergunta do PÚBLICO. “Sobretudo porque alguns se mostraram bastante surpreendidos com a situação, já que nesta altura as suas preocupações se centram nos testes intermédios.” Mas houve quem achasse que 15 minutos era pouco tempo para o que queriam dizer.

“Vejo alguns alunos extremamente interessados. Percebe-se que os pais aproveitam esse interesse e estimulam a investigação e sentido crítico. Vê-se perfeitamente quando essas práticas vêm da família”, diz o professor, cujo apelido, Spínola, é muitas vezes pretexto para se falar do 25 de Abril. “Perguntam sempre se sou da família de António de Spínola.” Mas nunca desvenda aos alunos se tem alguma ligação familiar ao primeiro Presidente da República depois da revolução de 1974. Ao PÚBLICO também não.

“O 25 de Abril para mim é um feriado, em que no ano de 1974, nesse dia, a ditadura salazarista acabou, a população portuguesa saiu à rua e cantou Grândola, vila morena, de Zeca Afonso, para restaurar o direito à liberdade em Portugal. Para parar as tropas, as crianças meteram cravos nas armas dos soldados (…)”, Sebastião (E.S. da Cidadela)

Para este professor, “a Revolução dos Cravos que todos apontam parece ser uma ‘revolução romântica’, e da ‘revolução’ cada vez mais ficam os ‘cravos’ e a Grândola, vila morena”. Da leitura dos textos escritos pelos seus alunos fixou-se no que escreveram dois jovens, João e Guilherme: “Sei que não lhes é possível comparar o antes e o depois, mas expressam o que se pode inferir do sentir do meio familiar.”

O João diz que “existem muitas pessoas que não consideram esta data como um motivo de celebração, mas de luto”; o Guilherme “apercebe-se e sabe que o 25 de Abril foi de mudança, mas o ‘espero que tenha sido para melhor’ e o facto de voltar a insistir ‘é óbvio que neste sentido [da(s) liberdade(s)] é uma mudança para melhor, mas será que noutras é melhor?’ denota sombras, não digo no horizonte, porque está longínquo, mas já, no seu dia-a-dia. E estes sentires do 25 de Abril preocupam-me”, diz Paulino Spínola.

“O 25 de Abril de 1974 foi, na minha opinião, uma revolução que teve início ao som da música de Zeca Afonso. Chamada a Revolução dos Cravos, esta foi para a liberdade [libertação] dos portugueses a [da] ditadura militar de António O. Salazar”, Tomás (E.S. da Cidadela).

Nazaré Oliveira defende que o ensino da História deveria ir até ao 12.º ano em todas áreas: “Já disse isto ao ministro da Educação.” Para esta docente, “do ponto de vista curricular, há uma grande protecção dos alunos em relação às novas tecnologias”. Admite que fazem falta mas afirma: “Estou a ver o meu país cada vez mais à deriva sob o ponto de vista cultural. Há um certo analfabetismo cultural em relação a acontecimentos históricos que são fundamentais.”

Os manuais são também alvo de crítica: “Podiam ser organizados de maneira muito mais interessante. Seleccionavam-se as etapas da História consentâneas com as aprendizagens da opção do jovem. Por exemplo, os alunos de Economia poderiam ter um programa específico à volta desses temas.” E recorda um artigo, que pensa ter lido no jornal Globo, que dizia que, “se os estudantes de Economia soubessem mais História, provavelmente não teríamos caído em situações que temos caído”. Refere-se aos “anos 1930, aos anos 1970 e agora”.

E não entende como o tema 'Portugal: do autoritarismo à democracia' é o último do programa e do livro, “o que o desvaloriza”. Por sugestão do PÚBLICO, Nazaré Oliveira faz a contagem de páginas do manual de História do 9.º ano dedicadas ao assunto: “12 páginas de texto informativo (acompanhadas de outras 12 só com documentos).” Ou seja, num manual composto por dois volumes (a parte I com 143 páginas e a parte II com 111), num total de 254 páginas, o 25 de Abril ocupa perto de 5% dos conteúdos. “Fico indignada com isto”, diz.

Todos os anos lectivos, Nazaré Oliveira faz por levar alunos do 9.º e do 12.º ano à Assembleia da República e dinamiza ali debates entre os jovens e os deputados: “Quero que eles percebam e sintam que estão num espaço onde as grandes questões deveriam ter lugar. É um espaço privilegiado de cidadania. Ali, as pessoas deviam pôr em primeiro lugar os interesses nacionais e só depois os interesses político-partidários. E o que é que vejo? Vejo a subversão disto tudo. Mas é isto que eu mostro aos meus alunos.” E de forma apaixonada. “Eu acredito muito nos nossos jovens e digo-lhes: ‘Gostava que fossem para a política. Quero ouvir falar de vocês’.”

Pedindo que não se interpretem as suas palavras como arrogância profissional, conclui: “Cada vez me acho mais útil no mundo actual. Continuo a ter um papel muito importante, não na mudança do mundo, mas quem sabe…”

Paulino Spínola também refere que “os programas abordam muito ao de leve o último quartel do século XX e o início do século XXI. Talvez o programa devesse ser reajustado, para chamar um pouco mais à atenção de certos aspectos”.

Dar ou não importância a um data como a do 25 de Abril “depende muito do grupo de História de cada escola, é uma opção dos docentes do grupo”. O professor, que gostava de ter mais tempos lectivos por turma “para analisar os temas com maior profundidade e de os poder complementar com informação de artigos de jornais, filmes e outras fontes”, sabe que os miúdos que, por exemplo, vão para Ciências “nunca mais olham para um manual de História”. Os de Humanidades, sim. “Mas o final do séc. XX é dado no fim do terceiro período do 12.º ano.”

Remetida a História contemporânea sempre para o final dos manuais e dos programas (que nem sempre se conseguem cumprir), um jovem pode muito bem chegar ao final do ensino secundário, aos 18 anos, sem nunca ter dado esta matéria em sala de aula. Excepto numa leve abordagem no 2.º ciclo, quando tinha 11 anos.

“(…) Não, eu não conseguiria imaginar um mundo, uma realidade sem liberdade. A liberdade é o direito de viver”, Fernando (E.S. de Bocage)

“(…) O nosso país está precisar de uma revolução como esta”, Tomás (E.S. da Cidadela)
 
 

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