Educação Sexual no currículo para acabar com "faz-de-conta"

Uma especialista da Universidade do Minho começou por considerar a lei da Educação Sexual adequada, mas diz que o tempo veio demonstrar que o modelo não está a funcionar. Entre outras medidas sugere uma aposta forte na formação de professores, em contexto de sala de aula.

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Lei obriga as escolas a desenvolver programas de Educação Sexual com o mínimo de seis horas por ano Enric Vives-Rubio

A terminar um ciclo de três anos de investigação na área da Educação Sexual, a especialista Zélia Anastácio, da Universidade do Minho, afirma que em Portugal “a lei está longe de estar cumprida” e que o que se passa nas escolas, neste campo, “é uma espécie de faz de conta”. Para inverter a situação defende a instituição de um tempo definido no horário dos alunos, em todos os ciclos de ensino, dedicado exclusiva e especificamente à matéria; o aumento do número mínimo de horas destinadas ao tema bem como a sua distribuição ao longo do ano lectivo; e uma aposta na formação dos professores em contexto de trabalho.

“Tenho a perfeita noção de que a sugestão de integrar um momento dedicado à Educação Sexual nos horários dos alunos assusta muita gente. Porque – e eu concordo – a Educação Sexual não é, nem se pretende que seja, uma disciplina. A questão é que esta pode ser a única forma de sair da situação em que caímos”, justifica a investigadora.

Em entrevista ao PÚBLICO, fez notar que “as áreas curriculares não disciplinares nas quais Educação Sexual devia ser integrada (como a Formação Cívica, por exemplo) acabaram entretanto” e que “a abordagem numa lógica de transversalidade, inerente a todas as disciplinas, também prevista na lei, está a resultar numa desresponsabilização”. “O que se verifica é que todos podem fazer e, na verdade, ninguém faz”, afirma Zélia Anastácio.

Há três anos a coordenar um projecto de desenvolvimento de Competências para a Saúde e a Sexualidade Saudável a partir da Identificação de Necessidades em Meio Escolar e Meio Institucional (Financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia), Zélia Anastácio ressalva que a lei lhe pareceu “adequada, quando foi publicada”. Frisa, contudo, que neste momento “já é possível concluir que o modelo não está a funcionar”.

A lei n.º 60/2009, que foi aprovada quando José Sócrates era o primeiro-ministro, obriga todas as escolas a desenvolver programas de Educação Sexual, com a duração mínima de seis horas por ano, no 1.º e 2.º ciclos do ensino básico, e de 12 horas, no 3.º ciclo e ensino secundário.

A primeira avaliação, cujos resultados foram conhecidos em Julho do ano passado, já deixava entrever dificuldades, apesar de os números poderem indicar o contrário. Na altura, Margarida Gaspar de Matos, coordenadora da equipa da Sociedade Portuguesa de Psicologia da Saúde, à qual coube inquirir directores de escolas, professores, pais e alunos, frisou que a maioria das escolas e agrupamentos (83,2%) estavam a cumprir a carga horária prevista e que a educação sexual entrara na rotina. Mas acrescentou que, quando a equipa se deslocou a cinco escolas, concluiu que, “muitas vezes”, a lei estava a ser cumprida na ‘forma’ e não na filosofia”.

"O mínimo é o máximo" na escola
É também essa a opinião formada por Zélia Anastácio depois do contacto com escolas e em resultado de diversos estudos nos quais participa ou os quais coordena: a de que existe o tal “faz de conta”. “Normalmente, as tais seis ou doze horas mínimas estipuladas são também o máximo que a escola assegura. E são ocupadas com iniciativas pontuais – é Natal, vamos falar do nascimento de Jesus; no Dia dos Namorados juntam-se os alunos todos do mesmo ciclo e promove-se uma actividade com essa temática…”, exemplifica. Isto, sublinha, “está longe de corresponder a um projecto coerente e consistente para cada turma, e que envolva todos os professores numa perspectiva de transversalidade, como indica a lei, e que produza resultados, em termos de educação sexual”.

Na sua perspectiva, a situação actual resulta de factores como a extensão dos programas disciplinares, o aumento de alunos por turma, a pressão colocada nos professores pelos exames de fim de ciclo e questões como a da avaliação docente, que “contribuíram para um clima de tensão e de desmotivação nas escolas”. Frisa, no entanto, que se parte destes problemas poderia ser ultrapassada com a definição de tempos específicos para a Educação Sexual no currículo dos alunos e com a sua distribuição ao longo dos três períodos lectivos, restaria ainda um, “decisivo” – "a falta de formação adequada dos professores", que na sua perspectiva "está relacionada com o factor motivação”.

Um estudo de investigação-acção iniciado em 2011 e realizado num agrupamento de escolas do Porto, veio confirmar que “dois terços dos docentes não têm qualquer formação na área e os restantes participaram em acções de 25 horas, o que é manifestamente insuficiente”, indica. “Verificámos que dos 135 inquiridos, 90 afirmaram que pretenderem vir a realizar actividades de ES com os alunos, enquanto 45 manifestaram não o pretender fazer. E, destes, a maior parte justificou a sua posição dizendo que aquelas não constavam dos conteúdos programáticos da sua disciplina (13), que não se sentiam preparados (13) e tinham falta de formação para abordar o tema (4)”. Dois disseram não ter motivação para tal e um afirmou que o tema não era “da sua competência".

Formação "altera perspectivas"
A “profunda alteração da perspectiva e da capacidade de intervenção dos docentes” foi avaliada de forma qualitativa, após uma acção de formação em contexto de trabalho, afirma Zélia Anastácio. E são essa e outras experiências que está a desenvolver que lhe permitem concluir que “não são 25 horas de aulas teóricas em horário pós-laboral que ajudam os professores a ultrapassar os obstáculos que eles próprios identificam”. Entre estes estão a falta de competências na área, a falta de formação, os preconceitos enraizados, o receio das reacções dos pais e o desconforto pessoal, aponta.

Zélia Anastácio defende que a carga mínima da formação deve ser de 150 horas,78 das quais em trabalho individual e implementação do que aprendeu e preparou em sala de aula – um modelo que a sua equipa tem vindo a testar. Isto porque, neste caso, a aplicação de estratégias é acompanhada ou orientada pelo formador, que ajuda o professor a ultrapassar as dificuldades concretas com que se depara na aplicação do que aprendeu junto dos seus alunos. Este apoio, afirma a especialista, é “muitas vezes essencial” para que “se quebre o gelo” e se afastem os “receios e preocupações” que em muitos casos impedem os professores de avançar.

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