Educação: o processo de mistificação em curso

A médio prazo perceberemos que é um sucesso ilusório, mas então já os relatórios de gerência e contas estarão encerrados e ninguém será responsável.

As últimas semanas têm sido marcadas na área da Educação por um processo de mistificação da opinião pública que se pode desdobrar em duas vertentes principais.

A vertente mais pública é a de uma renovada retórica de combate ao insucesso e ao abandono escolar, com um aparato “formador” em que alguns enviados político-pedagógicos do ministério da Educação arregimentaram directores e algumas chefias intermédias para lhes voltarem a inocular a velha fórmula do Direito ao Sucesso e repetiram “formações” desempoeiradas de há um par de décadas e um portefólio de “boas práticas” que se resumem, quase sempre, em criar grupos de nível de desempenho entre os alunos, mais ou menos temporários, desenvolver alegadas estratégias pedagógicas diferenciadas e, assim, atingirem necessariamente um sucesso quase total, a menos que os alunos nem apareçam na escola. Tudo coberto com uma parafernália de documentação para registar diagnósticos, estratégias, critérios, perfis, implementações, avaliações intermédias, reavaliações, reformulações, num aparato que tende mais a uniformizar práticas do que a promover a sua diferenciação. Às escolas e agrupamentos foram solicitadas réplicas – na forma de planos “locais” de promoção do sucesso escolar – da formação recebida, como se fosse, de novo, necessário evangelizar os professores, sempre os únicos responsáveis pelo insucesso dos alunos quando esta facção bem-pensante toma o poder no ME.

A vertente mais oculta do processo em curso passa pela generalização da transferência para as autarquias de muitas competências que ainda residem nas escolas, de modo a que estas se possam candidatar a verbas europeias, tanto para infra-estruturas como para “projectos” de combate ao abandono escolar. Desta forma, passam a ser as autarquias ou as novas comunidades intermunicipais a ficar com verbas destinadas à Educação a que depois as escolas terão de concorrer para desenvolverem os seus próprios projectos. O argumento político destinado a mistificar a opinião pública menos informada é que assim se “aproximam” as decisões das populações, quando o que se passa é o total esvaziamento da autonomia das escolas e a sua submissão a uma dupla tutela, do ME e das autarquias, desaparecendo a possibilidade de acederem directamente às verbas disponíveis.

A combinação destas duas vertentes resulta num discurso que mobiliza conceitos e objectivos contra os quais parece muito mal estarmos (quem, em seu perfeito juízo, poderá afirmar-se contra o sucesso dos alunos?), mas que é enganador porque esconde que o sucesso não se atinge por decreto, responsabilizando unilateralmente as escolas e os professores pelo sucesso dos alunos e usando a Educação como uma espécie de véu e mecanismo de resolução (aparente) de problemas sociais muito graves que permanecem. E é um discurso enganador porque esconde que esta é uma estratégia encapotada para financiar e recapitalizar as finanças locais através de uma transferência de competências que vale para alguns autarcas (claro que há excepções) tanto quanto for a dimensão do “envelope financeiro” recebido. Alegam-se enormes bondades das medidas, um interesse enorme na melhoria das condições educativas, mas, no fim do dia, o que conta mesmo é o que se recebe em troca e quanto, a nível central, se poupa numa lógica de Educação Low Cost para o Orçamento de Estado.

Por fim, é importante que atentemos nos laços que se vão estabelecendo em torno da produção e execução destes planos de promoção do sucesso - a nível de escola e a nível (inter)municipal - com o recurso a um outsourcing nem sempre transparente. A encomenda de “estudos” e “projectos” a “empresas” a que antes não se conhecia tal área de actividade ou a centros de investigação a que estão ligadas pessoas que surgem publicamente a defender a bondade da transferência de competências ou a fornecer “formação” remunerada nestas matérias não é ilegal mas é algo que levanta dúvidas éticas. Porque há quem ande a legitimar “cientificamente” a tomada de medidas de que beneficiam de forma mais ou menos directa num emaranhado de relações pouco claras.

Não duvido que, com este espartilho, o sucesso aumente para níveis inauditos e tenhamos muita gente, a nível central e local, a reclamar a responsabilidade por se ter conseguido mais sucesso com menos dinheiro do orçamento numa lógica de continuidade do fazer mais com menos. Se os alunos ganham com isso? A médio prazo perceberemos que é um sucesso ilusório, mas então já os relatórios de gerência e contas estarão encerrados e ninguém será responsável.

Professor do 2.º ciclo do Ensino Básico

Sugerir correcção
Ler 1 comentários