E se uma veterinária lhe exigir meia casa em troca da cura da impotência?

Tribunais não percebem como pôde uma especialista em animais tratar suposta disfunção sexual do marido. Esposa garantiu em tribunal que foi com “muita paciência, amor e tacto”.

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Nem todos os divórcios terminam com a família dos cônjuges desavindos a discutir o seu desempenho sexual AFP PHOTO / ANDREAS SOLARO

É raro um divórcio ser um processo feliz, mas nem todos terminam com os familiares dos cônjuges desavindos a discutir em tribunal as capacidades reprodutivas e o desempenho sexual do marido. Nem com a mulher a exigir-lhe 136 mil euros por lhe ter, supostamente, curado a impotência, graças à sua experiência como veterinária.

A história deste casal começa em 2002, ano em que a veterinária, então com 24 anos, conhece um engenheiro cinco anos mais velho e sai de casa dos pais para ir viver para casa dele, em Benfica, em Lisboa. Os pais oferecem-lhe um consultório como prenda de casamento, celebrado com separação de bens, e durante os primeiros anos tudo parece correr sobre rodas. Ela não esconde, porém, que preferia viver numa casa maior e é isso que acaba por suceder. Saem de Lisboa e compram um apartamento num condomínio fechado com piscina e campo de ténis em Carnaxide, concelho de Oeiras. Apesar de os rendimentos da veterinária não lhe permitirem semelhante extravagância, quando chega o dia da escritura também ela assina o papel que faz com que a casa passe igualmente a ser sua.

A união leva já dois filhos quando chega ao fim, em 2013, com recriminações de parte a parte. Director-geral da subsidiária de uma multinacional, o engenheiro não tem pejo em afirmar que a mulher com quem casou se tornou desequilibrada — o seu historial clínico inclui, de facto, episódios depressivos e fobia social —, incapaz de cuidar em condições dos filhos ou de manter um trabalho. A veterinária, por seu turno, queixa-se de episódios de violência física e psicológica e de ser o seu ordenado que pagava as despesas da vida familiar, enquanto teve emprego. “Eu estava a ser completamente ingénua e roubada”, há-de dizer mais tarde aos juízes.

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É já com o divórcio a decorrer e a mulher a morar noutro lado que o engenheiro resolve tentar segurar aquilo que acha que é seu por inteiro mas que corre sério risco de ser dividido pelos dois: o apartamento, pelo qual pagou mais de 270 mil euros a pronto. Desencadeia uma acção contra a ex-companheira acusando-a de enriquecimento sem causa. Seria mais um processo judicial entre tantos, não se desse o caso de a veterinária alegar algo insólito: que é dona de metade da casa pelo facto de ter, com a sua experiência do reino animal, curado o marido de um problema de disfunção eréctil.

Prazer garantido a machos

“No quarto ano da faculdade tive uma disciplina de Reprodução Animal na qual aprendi como se faz a colheita de sémen a animais tão grandes como cavalos”, explicou em tribunal, revelando ter usado uma técnica de estimulação da próstata que proporciona prazer “a qualquer macho, racional ou irracional”. Os pais da veterinária confirmaram-no aos juízes, não sem algum constrangimento: o facto de o apartamento ter também ficado em nome da filha era “uma compensação” por ela lhe ter resolvido tão delicado problema. Uma ajuda, nas palavras da própria cônjuge, feita de “muita paciência, amor, tacto, sensualidade e compreensão” — até porque ele “já fizera antes tentativas goradas de extinção da disfunção eréctil com outras mulheres”. Nas contas do deve e do haver também pesou, na sua opinião, ter dado ao marido “estabilidade pessoal e familiar e ter-lhe proporcionado a paternidade”.

Já o engenheiro sempre negou qualquer padecimento do género — que, de resto, nunca se provou. “E se o tivesse tido não ia ser tratado por uma veterinária, e muito menos com o método que ela indicou, enfiar coisas no rabo. Seria mais simples e mais barato recorrer a uma consulta médica”, apontou. Para justificar ter posto o apartamento também em nome da mulher, o marido diz ter cedido à sua chantagem psicológica e emocional: “Dizia que a casa tinha de ser dos dois, senão a relação não funcionava.”

Até a sua actual namorada, por sinal enfermeira de profissão, foi chamada à barra do tribunal para dizer de sua justiça. Reticente, acabou por contar que o parceiro já havia ocasionalmente consumido Cialis, uma versão mais apurada do Viagra. Mas por motivos diferentes dos invocados: “Os homens às vezes gostam de tomar, porque acham que se sentem mais divertidos."

Descrente das habilidades da veterinária no tratamento da espécie humana, o juiz do Tribunal de Sintra encarregue do caso mandou-a entregar ao ex-marido metade do valor do apartamento, mas isso não a demoveu: apresentou recurso. No passado dia 7 de Julho, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que a veterinária terá mesmo de pagar para continuar co-proprietária da casa. “Estamos perante um benefício para a mulher recebido em consideração do estado de casados”, escreveram os juízes. Consumado o divórcio, não há razão para o ex-marido não ser reembolsado de metade das despesas que teve com a aquisição do imóvel. “Foi a continuidade do casamento, o nascimento da filha, a perspectiva de finalmente constituir uma família, que presidiram à iniciativa de fazer a ré outorgar com ele a escritura de compra e venda”, observam.

Quanto às competências especiais da veterinária, os magistrados mostram-se cépticos: “Se a disfunção tinha uma origem fisiológica, não vemos como ‘pelo toque’ — baseado na sua experiência com gatos e cães — estivesse apta a restituir a plenitude da saúde sexual” ao marido.

Nem a veterinária nem o advogado que representa o seu ex-marido quiseram prestar declarações ao PÚBLICO.

“Doações caducam com o divórcio”

Habituado a trabalhar na área do direito da família, o advogado Rui Alves Pereira, da sociedade PLMJ, diz que, apesar de poder parecer um caso bizarro aos olhos do cidadão comum, este é um problema simples do ponto de vista jurídico. E recorda que as doações, se se encarar o que se passou neste casamento como tal, caducam com o divórcio.

O especialista dá o exemplo de um pai que oferece um bem ao seu filho casado — um apartamento, por exemplo. Segundo o Código Civil, tem direito a anular a doação em caso de divórcio, fazendo-a reverter para os netos. O mesmo se aplica à relação entre marido e mulher: a lei impede que benefícios concedidos por um deles tendo em conta o casamento permaneçam no património do cônjuge beneficiado quando é posto um ponto final na união civil. Caso diferente seria se se tivesse provado que um dos dois parceiros tinha renunciado de forma exagerada à sua vida profissional, para ficar em casa a cuidar da família. Aí, teria direito a uma compensação do parceiro, se por via dessa opção tivesse ficado fortemente prejudicado do ponto de vista patrimonial.

“A decisão deste acórdão é inteiramente correcta”, observa, por seu turno, a advogada Arménia Coimbra. “Estamos perante um benefício auferido pela ex-esposa em função do seu estado de casada. Ocorrendo divórcio, quis o legislador (a partir de 2008) que todos os benefícios recebidos pelos cônjuges, em consideração do estado de casado, se perdessem, apenas porque a razão dos benefícios era a constância do casamento.”

 

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