A Matemática é para o menino e para a menina?

O PÚBLICO compilou um conjunto de dados sobre como se têm saído os rapazes e as raparigas nos exames nacionais. E, em geral, elas saem-se melhor. Já nos testes internacionais, que apelam à capacidade de “enfrentar o desconhecido”, ganham eles. Há uma matemática dos rapazes e outra das raparigas?

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As diferenças acentuam-se ao longo do percurso escolar Lara Jacinto

Todos os anos, milhares e milhares de alunos participam nas Olimpíadas Portuguesas da Matemática. E todos os anos são escolhidos os melhores 30 para disputar a final nacional. Na edição deste ano, na categoria que envolve jovens do 10.º ao 12.º ano, competiram 22 rapazes e oito raparigas. No ano passado, foram à final 25 rapazes e cinco raparigas. E no ano anterior, meninas, apenas três. Esta desproporção diz alguma coisa sobre a forma como eles e elas se relacionam com a disciplina?

Luís Merca, que anualmente organiza as olimpíadas, uma iniciativa da Sociedade Portuguesa de Matemática, acredita que o reduzido número de raparigas nas finais não tem nada a ver com a apetência delas para a Matemática. Sim, todos já ouvimos dizer que “os rapazes são melhores nas Ciências Exactas e as raparigas são melhores nas Ciências Sociais”, como lembra Catarina Oliveira Lucas, professora da Escola Superior de Educação do Porto, coordenadora da European Women in Mathematics para Portugal. Mas será realmente assim?

Lurdes Figueiral, presidente da Associação de Professores de Matemática, diz que nunca notou nas suas aulas que fosse preciso ensinar de modo diferente rapazes e raparigas. No máximo, afirma, “elas são mais concentradas” e “eles menos ansiosos”. Mas voltaremos à ansiedade e a outros estados de alma dentro de momentos.

O PÚBLICO compilou um conjunto de dados sobre como se têm saído os rapazes e as raparigas nos exames nacionais do 4.º, 6.º e 9.º anos do ensino básico (os do 4.º e 6.º foram este ano abolidos) e também nos do ensino secundário. Tivemos em conta as notas dos alunos internos — aqueles que frequentam a escola ao longo de todo o ano e prestam provas no final. Os números (ver infografia) mostram que a média das classificações de exame das raparigas é, na maioria das vezes, superior à dos rapazes. É assim nas diferentes disciplinas. E também na Matemática.

Centremo-nos nesta última, porque hoje é esse o tema. A excepção é o 4.º ano: a média da performance dos meninos nos exames de Matemática tem sido sempre ligeiramente melhor, desde 2013. No 6.º há uma inversão: quase sempre ligeiramente melhor as meninas. No 9.º também. A distância aumenta no secundário. No ano passado, a média das notas dos rapazes no exame do secundário de Matemática foi de 11,80 valores (numa escala que vai até 20) e a das raparigas de 12,31. Ou seja, um pouco mais de meio valor de diferença, a mais alta dos últimos cinco anos.

“As diferenças acentuam-se ao longo do percurso escolar e espelham, no secundário, este facto: são mais as raparigas do que os rapazes que entram nas universidades, mesmo em cursos que eram antigamente cursos masculinos, como a Medicina, onde se exigem médias de acesso de 18 e 19 valores que, para muitos rapazes, são inatingíveis”, afirma Alice Mendonça, professora da Universidade da Madeira, uma especialista em Sociologia da Educação que tem estudado as desigualdades de género no desempenho académico.

“Pensar como um cientista”

Alice Mendonça lembra que os rapazes têm sido ultrapassados nas suas prestações escolares e que elas têm mais sucesso. Nota que o assunto tem despertado o interesse de estudiosos e de governantes de vários países. E que o Reino Unido já adoptou, inclusive, medidas de reforço escolar destinadas aos rapazes, de modo a equipará-los às raparigas nos resultados académicos.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) é uma das que tem vindo a alertar, em várias ocasiões, para a questão das desigualdades. No seu estudo ABC da igualdade de género na Educação: Aptidão, Comportamento, Confiança, divulgado no ano passado, dava conta de que os rapazes tendem a abandonar a escola mais cedo do que as raparigas, gastam menos tempo com trabalhos de casa, têm mais propensão para achar a escola um desperdício de tempo. Os resultados dos testes feitos a 510 mil alunos de 15 anos, em 60 países e zonas económicas, no âmbito do mega estudo internacional da OCDE, o PISA, mostram isto: em 2012, último para o qual há dados, as raparigas saíram-se melhor do que os rapazes na leitura (38 pontos de diferença nos países da OCDE — “o equivalente a um ano de escola”); os rapazes saíram-se melhor do que as raparigas na Matemática (em média 11 pontos melhor — “o equivalente a três meses de escola”).

Como foi em Portugal? Seguiu a tendência internacional. E ao contrário do que se passa nos exames nacionais, nos testes PISA de Matemática a pontuação dos rapazes foi (em média) 11 pontos superior à das raparigas — dentro da média da OCDE.

As desigualdades a nível internacional preocupam os peritos. Eles estão a ficar para trás na leitura, sendo que ler bem é essencial para as aprendizagens de qualquer matéria; já elas, quando lhes é pedido para “formular situações matematicamente” ou para “pensar como um cientista”, saem-se pior do que eles, o que pode prejudicar o seu acesso a áreas geralmente bem remuneradas em termos salariais, como as engenharias ou a computação. É preciso trabalhar para que todos, meninas e meninos, tenham as mesmas oportunidades, alertava a organização.

Mas no que ficamos, em Portugal? Nos exames nacionais são elas que se saem melhor. Nos testes PISA são eles. O que é que isto significa? Vários especialistas contactados pelo PÚBLICO começam por lembrar que os dois tipos de provas medem coisas diferentes.

Eles gostam de desafios

“Os testes internacionais PISA avaliam criatividade, perspicácia, destreza matemática na resolução de situações e problemas do quotidiano e os exames nacionais são habitualmente utilizados para avaliar conhecimentos matemáticos que são estipulados a priori e que, em princípio, devem estar relacionados com os temas estudados nas aulas ao longo dos anos”, diz Catarina Lucas. “Os resultados dos exames podem induzir a um ‘falso sucesso’ dos alunos, pois os estudantes alcançam bons resultados, mas não desenvolvem a capacidade de enfrentar o desconhecido, de resolver situações novas ou tarefas pouco habituais. Nos exames nacionais o aluno sabe de antemão o que tem de estudar. Nos testes PISA não, é uma surpresa. Geralmente, em termos emocionais, os rapazes lidam melhor com este efeito surpresa enquanto as raparigas podem sentir-se menos seguras”, afirma.

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Tal como as Olimpíadas de Matemática, “os testes PISA funcionam como um desafio à inteligência e os rapazes gostam disso”, prossegue esta matemática. “Eles gostam de superar obstáculos, ultrapassar barreiras cada vez mais elevadas, de explorar o desconhecido.” Já as raparigas, gostam de “saber onde pisam”, saber o que têm de estudar e organizar o seu estudo.

Claro que “há excepções” e muitas raparigas gostam de desafios — como, desde logo, ela própria, que se tornou matemática. Aliás, lembra, em Portugal, “há mais mulheres matemáticas do que homens matemáticos, ao contrário de outros países do Norte da Europa”.

As raparigas “estudam, aplicam-se, treinam muito, valorizam muito os exames”, diz também Luís Merca. Talvez a explicação para que superem os rapazes nos exames nacionais, mas não nos testes do PISA, esteja aí. “As raparigas são mais racionais, chegam ao 11.º e ao 12.º e o seu objectivo é ter boas médias, entrar na universidade e focam-se nisso”, prossegue o organizador das Olimpíadas da Matemática, também professor coordenador da Área Interdepartamental de Matemática da Escola Superior de Tecnologia de Tomar. Será também essa a razão para que sejam tão poucas nas finais, admite: “As olimpíadas e outras actividades extracurriculares não são prioridade para elas. Já os rapazes são mais apaixonados.”

O que significa ser mais apaixonado? “Se gostam de algo, mesmo que não seja imediatamente importante para o seu futuro, não abdicam, põem as olimpíadas ao mesmo nível da escola, mesmo se isso pode comprometer as notas, o que geralmente não acontece, porque estamos a falar de muito bons alunos.”

Uma questão de atitude

Se se pede resposta a “exercícios mais práticos”, como acontece no PISA, “se o aluno se confronta com um problema, isso implica que ele tenha disponibilidade e confiança para arriscar”, afirma Adelinda Candeias, do CIEP — Centro de Investigação em Educação e Psicologia, da Universidade de Évora (UE), que tem estudado a relação do rendimento escolar em Matemática com as atitudes dos alunos face à disciplina.

E a verdade é que os dados que existem indicam que os rapazes marcam pontos em termos de atitude. “Os rapazes manifestam afectos mais positivos pela matemática do que as raparigas”, concluiu Adelinda Candeias num estudo de que é co-autora, com outros investigadores da UE, feito com 743 alunos do 1.º, 2.º e 3.º ciclos do ensino básico em 11 escolas. Eles confiam mais nas suas capacidades — porque lhes é incutido, desde cedo, que os “rapazes devem saber resolver problemas” e “ir para cursos de engenharia”. Isto influencia a forma “com que partem para certas tarefas”, afirma.

Francisco Peixoto, professor do Centro de Investigação em Educação do ISPA — Instituto Universitário e, também ele, co-autor de um estudo que envolveu em 2012 mais de 1700 alunos do 5.º ao 12.º ano, sobre as atitudes face à Matemática, acrescenta: “Há uns anos havia evidências de que os rapazes tinham melhor desempenho a Matemática, mas as diferenças têm vindo a desaparecer. Apesar disso, eles continuam convencidos de que são melhores do que as raparigas.” São, de algum modo, “menos realistas”, prossegue o professor do ISPA, porque, muitas vezes, quando se confronta a auto-avaliação que fazem deles próprios com as notas que têm, as diferenças em relação às raparigas são poucas (ou, até, são elas que estão melhor).

E por que razão é assim? “É uma construção social. O estereótipo dos anos 60, 70 é: as meninas gostam de Letras os rapazes de Matemática e esta construção social influencia a família, os media, os professores que, por sua vez, transmitem isso aos alunos. Os rapazes são mais estimulados para as questões da Matemática, as raparigas para as da leitura.”

Motivação intrínseca

A OCDE revelava no seu relatório do ano passado como as famílias “continuam a ter diferentes expectativas para filhos e filhas” em relação à profissão que esperam que eles prossigam: quando questionados, 50% dos rapazes que fizeram os testes do PISA disseram que os pais esperam que eles sigam profissões ligadas à ciência, tecnologia, engenharia e matemática, enquanto essa percentagem desce para 20% em relação às raparigas.

“Os professores são permeáveis” a esta construção, prossegue Francisco Peixoto. E quando se tem em conta as notas que dão ao longo do ano aos seus alunos — em vez das dos exames nacionais  — os rapazes acabam por aparecer em vantagem uma vez mais. Pode haver alguma “benevolência” na hora de avaliar os rapazes. Damos mais tempo a alguém para responder a uma pergunta se achamos que a pessoa é capaz de acertar, exemplifica. Damos menos tempo a quem achamos que vai falhar. “O professor não está a fazer isto conscientemente, mas as expectativas acabam por contaminar a forma como interagem com os alunos.”

Num relatório divulgado esta semana, intitulado Equations and Inequalities: Making Mathematics Accessible for All, a OCDE volta ao tema do género. Diz que olhando para os diferentes níveis de alunos, o hiato de género é maior, a favor dos rapazes, no topo, ou seja, no grupo das pontuações mais altas (há mais rapazes a conseguir uma pontuação de nível 6 nos testes do PISA, a mais alta, do que raparigas, isto tanto na OCDE como em Portugal).

Diz também que “não há nenhuma razão inata para que as meninas não sejam capazes de fazer tão bem quanto os meninos em matemática”. E considera que “a capacidade auto-percepcionada [pelos alunos] e a ansiedade são os principais factores por trás da disparidade entre os sexos”. Números: dois terços das raparigas da OCDE e 72% das portuguesas mostram-se ansiosas face às dificuldades que a Matemática lhes pode colocar, mais do que os rapazes.

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Fora da sala

A OCDE lembra ainda no relatório Equations and Inequalities... que “rapazes e raparigas têm diferentes oportunidades para desenvolver as suas competências de Matemática fora da escola”. Por exemplo, “há menor probabilidade de uma rapariga jogar xadrez, programar computadores, participar em competições de Matemática ou em outras actividades extracurriculares que envolvam Matemática”.

Talvez por isso, Catarina Lucas tem notado, como professora, “que os rapazes percebem melhor o carácter funcional da Matemática no dia-a-dia (jogos de computador, engenharias, etc.), enquanto as raparigas continuam a vê-a como uma disciplina a estudar na escola e com pouca projecção no seu futuro”.

“Talvez necessitem de estímulos diferentes por terem sensibilidades diferentes e uma visão do mundo também diferente, mas não por terem níveis de inteligência diferentes”, sublinha a coordenadora da European Women in Mathematics para Portugal. “O que me parece é que têm tendência a desenvolver capacidades matemáticas distintas: os rapazes a resolução de problemas e as raparigas a organização. Se complementarem as duas atingem o ideal.”

Francisco Peixoto sublinha o papel da motivação — “Estar motivado é meio caminho para aprender”, e motivar alunos implica estar atento às diferenças: “Não se consegue motivar da mesma forma rapazes e raparigas, como não se consegue motivar da mesma forma alunos de Lisboa e Freixo de Espada à Cinta. Terão coisas em comum e outras não, e é preciso alguma dose de criatividade para motivar. Estou a falar de motivação intrínseca — aprender não pelas notas ou para agradar aos pais”, querer mesmo aprender.

E separá-los?

Margarida Garcia dos Santos é presidente da direcção da delegação portuguesa da Associação Europeia de Educação Diferenciada. Defende as vantagens de separar rapazes e raparigas, como acontece no Colégio Planalto, ou no Mira Rio, ambos em Lisboa, o primeiro exclusivamente masculino, o segundo para meninas, ambos pertencentes à cooperativa Fomento, ligada à Opus Dei. “Estudos recentes sobre o cérebro mostram que existem diferenças entre rapazes e raparigas que, de alguma forma, explicam resultados escolares diferentes”, afirma.

“É uma área de investigação recente que tem demonstrado que tendencialmente o cérebro masculino está mais apto para execução de tarefas matemático-espaciais, tendo como resultado uma melhor capacidade para aprendizagens nesta área e obtendo assim melhores resultados”, sustenta. “Daí que contextos educativos diferenciados possam adoptar estratégias que, desde os níveis mais básicos da aprendizagem, vão ajudando rapazes e raparigas a conseguirem ter os mesmos resultados escolares.”

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Ou seja, ensinar alunos e alunas separadamente faz com que “o sexo não seja uma condicionante dos resultados a atingir”. Margarida Garcia dos Santos nota, contudo, que, na sua opinião, o problema, em Portugal, é “mais vasto” e passa pelo “insucesso dos rapazes” transversal a várias áreas. “Os rapazes são fortemente penalizados pelo nosso sistema de ensino muito teórico.”

Já Adelinda Candeias defende que a solução passa por "turmas heterogéneas" com "estratégias inclusivas". Os processos educativos de escolas, professores e pais têm de "contrariar estereótipos, (pré)conceitos e modelos culturais contaminados pelas diferenças de género ou pela 'fatalidade' das desigualdades sociais", diz José Morgado, do Centro de Investigação em Educação do ISPA. "Na verdade, a escola, a educação, pode e deve, ela sim, fazer a diferença."

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