“É a pior forma de despotismo: ‘Eu não te faço mal, mas, se quisesse, fazia’”

“O politicamente correcto implica pensar que a praxe é uma coisa horrível. Penso que há muito discurso moral sobre as praxes”, diz o psicanalista a quem pedimos que espreitasse os relatos que os nossos leitores nos fizeram chegar sobre praxe.

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Carlos Amaral Dias Joana Bourgard

Nos seus tempos de estudante foi praxado. Disseram-lhe para se sentar num bacio que estava, aparentemente, cheio de urina. Fez o que lhe mandaram. E, no final, informaram-no de que aquele líquido era apenas chá. “É a pior forma de despotismo. ‘Eu não te faço mal, mas, se quisesse, fazia’.” O episódio tem mais de 40 anos, mas faz lembrar muitos testemunhos que o PÚBLICO recebeu sobre estes “rituais de iniciação”, expressão usada por Carlos Amaral Dias para se referir à praxe académica. O psicanalista nasceu em 1946, em Coimbra, licenciou-se em Medicina, especializou-se em psiquiatria, foi presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise. Foi uma das três personalidades a quem pedimos para ler e analisar alguns dos muitos testemunhos que recebemos sobre praxe.

O que é que achou dos testemunhos sobre praxe que lhe enviámos?
O politicamente correcto implica pensar que a praxe é uma coisa horrível. Penso que há muito discurso moral sobre as praxes, mas poucos se questionam sobre a razão pela qual isto acontece.

Fiz parte do Conselho de Veteranos que aboliu a praxe em Coimbra em 1969, quando foi a crise académica. Era contra a praxe. O que é que me fazia ser contra a praxe? Ela representava um mundo com o qual queríamos acabar.

A praxe era vista como qualquer coisa que adormecia os estudantes para outras questões...?
Sim.

Mudou de ideias?
Por uma razão simples: não era verdade. A praxe reapareceu por alguma razão e a razão é que havia lugar para ela no mundo. Ao ler os emails que me enviou percebe-se muitas coisas...

Por exemplo?
Desde logo, o lugar que continua a existir na nossa cultura para rituais de iniciação. Vivemos numa cultura que não tem, aparentemente, rituais de iniciação. Nas culturas tradicionais, há rituais que marcam o momento em que uma pessoa passa a fazer parte do mundo dos adultos — por exemplo, o ritual da circuncisão, em África, que, em muitos locais, é seguido de mandar o jovem para a floresta, com poucos instrumentos de sobrevivência, para ver como é que ele é capaz de sobreviver sozinho.

Em Telavive, há uns 15 anos, o jogo que era mais querido pelos adolescentes era atirarem para o meio do trânsito, que lá é horrível, um boomerang. E ir buscá-lo. O que acontecia era que havia sempre um ou dois ou três que iam parar ao hospital e, às vezes, havia mesmo um que morria.

No Rio de Janeiro, os meninos que apanham aquele comboio que vai para as cidades-satélite viajam no exterior, agarrados [ao comboio] e de 600 em 600 metros há um poste. Se não se encolhem ficam lá. E eles fazem isso com algum gozo, penso eu, senão não faziam. Isto para dizer o quê? O que é que aconteceu aos rituais de iniciação? Será que nos afastámos assim tanto da sexualidade e da morte — que são as coisas que mais interessam aos seres humanos?

O que eu acho que acontece é que estes rituais ocupam na cabeça dos jovens um espaço no qual, se calhar, não queremos pensar até ao fim. Por que é que tantos jovens tiveram este tipo de reacções [quando questionados sobre praxe,]? Por que é que a defendem?

Então, vê a praxe dos estudantes como mais um ritual de iniciação?
É. Por que é que a última festa da praxe é a Queima das Fitas? Porque é o lugar onde acaba uma etapa. Queima-se as fitas. Acabou uma etapa. E põe-se a cartola, que é, evidentemente, um sinal da vida adulta e civil, que passa a ocupar a cabeça do estudante...

A sexualidade está muito presente nestes rituais... nos palavrões, nos hinos, nas declarações, nas posições que os caloiros imitam, que os praxistas pedem para que imitem, nas encenações...
Claro. Não acha que é na altura em que passamos a ser adultos jovens que é dada ao ser humano a possibilidade de juntar a palavra à coisa? Até sermos adultos jovens podemos falar da sexualidade, mas não compreendemos como é. Não vejo nenhuma questão nisso a não ser esta: as pessoas hoje preocupam-se, como se preocupavam as outras pessoas lá para trás, de uma forma obsessiva — e eu diria que ainda bem que é obsessiva — com a sexualidade e com a morte. Repito isto porque ou se compreende isto ou vamos pensar que estes jovens são uns tipos que não compreendem o mundo onde vivem e que vivem numa espécie de civilização que já não faz parte da nossa civilização e isso é uma forma de olhar para isto de um ponto de vista moral.

Deixe-me ler-lhe um testemunho, ao acaso: “Fui chamada de besta ignorante, inútil e burra. Fiz flexões num chão de terra debaixo da Lua. Tive noites em que não soube o que significava dormir e dias em que descansar era uma ilusão. Hoje, quatro anos mais tarde, relembro cada momento com um aperto no coração, um aperto de saudade.”
Se mudar uma ou duas palavras, não é preciso mais, encontra a descrição de um encontro amoroso. Noites mal dormidas... um aperto no coração... saudade... há um corpo que foi envolvido, obrigatoriamente envolvido, numa coisa que junta, digamos assim, a visão do corpo próprio, e o corpo do outro, debaixo do fantasma da sexualidade, mas organizado de uma forma em que o corpo é, digamos assim, “o lugar em que eu te possuo”. “Tu és minha, ou meu, justamente porque o teu corpo é meu.” É o “meu caloiro”. “O meu caloiro.” E os caloiros fazem o contrário: “É o meu doutor, o meu superior.” Essa pessoa diz que gosta da praxe... Mas ao ouvir esse testemunho eu penso que verdadeiramente não é da praxe que a pessoa gosta. É de outra coisa. Essa pessoa e as outras... A espécie humana é obcecada pela sexualidade. Vivemos sempre acompanhados pela sexualidade.

Muitos testemunhos também nos falam da dificuldade de dizer “não” quando se está em grupo.
E é verdade. O “não” é muito importante e há muitas pessoas, muitíssimas, que não desenvolvem a capacidade de dizer “não”. Porque dizer “não” é dizer “oponho-me a ti, não sou como tu, não sou”.

Deve lidar com muitas pessoas no seu consultório que não conseguem...
Muitas pessoas. Sendo que uma pessoa só passa a ser um adulto no sentido melhor do termo quando percebe que tanto faz ter dez mil do nosso lado e um contra nós como o contrário.

É possível ajudar as pessoas a dizer “não”? E qual deve ser o papel da instituição universitária?
Ora, é esse o ponto. Qual é o lugar que a praxe ocupa que a vida universitária não ocupa? Que lugares são oferecidos ao estudante que chega a uma universidade para se poder integrar? Há um espaço destinado a isso, em que isso seja possível? Um espaço destinado aos caloiros? Isso é pensado pela universidade? Não é.

Não há alternativa?
Não há alternativa porque as pessoas não querem pensar. Porque se as pessoas quisessem pensar constatariam que estas pessoas precisam de um tempo para se iniciarem e entrarem em contacto com outro tipo de realidade. Criticamos a praxe, mas o que é que podemos fazer em troca?...

Quando entrei em Medicina, ainda nem tinha feito os 18 anos. Cheguei à primeira aula e estava aterrado: não conhecia nada nem ninguém. Depois, arranjei maneira de fazer os meus próprios rituais de iniciação. Fazia parte de um grupo de pessoas que procuravam uma espécie de lugar crítico sobre a realidade, e brincávamos. A própria política era um lugar em que nós brincávamos... Quem é que se encontrava quando se tentou criar a secção de cinema da Universidade de Coimbra? Os mesmos que se juntaram quando se tentou criar o clube de jazz... Éramos sempre os mesmos.

Ao ler estes depoimentos, lembramo-nos de coisas que associamos às sociedades secretas...
Com razão. As sociedades maçónicas têm rituais de iniciação e não são jovens. São a pessoas mais velhinhas. E, se calhar, algumas das pessoas que criticam a praxe pelas boas razões acabam de dar a entrevista para o jornal e no momento seguinte estão a entrar no palácio maçónico onde também foram alvo de uma praxe.

Voltando à questão do “não”. Há quem defenda que estamos a falar de estudantes universitários, maiores de idade, que podem sempre dizer “não”. E que se fazem o que lhes é pedido é porque querem... ponto final.
Acho que esse argumento esquece que as pessoas individualmente não são o que as pessoas são em grupo. Desafio uma das pessoas que costumam participar nas manifestações na Avenida da Liberdade a descer sozinha a avenida, com um cartaz e um megafone... não se pode dizer que seja um comportamento socialmente não aceite, mas ela vai dizer-lhe: “Julga que sou tolo?” Porque isso é algo que se passa num determinado enquadramento, em grupo. É preciso também olhar para isto [a praxe] com este enquadramento. Os fenómenos dos grupos são muito diferentes e puxam mais pelas questões mais primárias da espécie. O Hitler, que era um pulha, mas era inteligente, acho que foi no ano de 1926, salvo erro, que escreveu que o ódio é o sentimento a despertar nas multidões, porque não há coisa que una mais as pessoas do que o ódio. E ele usou a arma. Ele usou aquilo que disse.

O que é que mais chamou a sua atenção nos depoimentos?
O número de pessoas que precisam da praxe. Um número impressionante que nos deve interrogar.

Eu fui praxado também. Era um caloiro de 18 anos. Fui praxado numa república. O que me fizeram? Mandaram-me sentar num bacio que aparentemente estava cheio de urina. Mandaram-me sentar e fazer um discurso. Sentei-me ali com a alma empenada. Naquela altura ninguém se podia recusar à praxe. Senão vinham atrás de nós...

Havia agressões físicas?
Claro que havia. Mas, então, lá fiz o discurso. E no fim, um disse: “Acha que eu o mandava sentar num penico de urina? Não vê que isso é chá que eu pus aí?” E era chá. E aí ele exerceu um poder mais forte do que se fosse mesmo urina. O poder de me mostrar o quão magnânimo ele era.

Há nestes relatos muitos jovens que elogiam o facto de, na praxe, os doutores não obrigarem quem tem doenças nos joelhos a fazer flexões...
Exactamente. É a pior forma de despotismo: “Eu não te faço mal, mas, se quisesse, fazia.”

Temos neste lote de depoimentos mais pessoas que, tendo sido praxadas e tendo praxado, dizem que preferiram ser praxadas mesmo quando isso implicou actividades que podemos ler como uma forma de submissão...
Há pessoas que dizem que o Freud está fora de moda e a gente pergunta: “O que é que você leu de Freud?” E a pessoa não leu nada. O Freud disse que dentro de cada pessoa há sempre uma área que fica ligada a uma injunção que podia ser dita desta maneira: ‘Bate-me, possui-me e trata-me mal.’ É um apelo da natureza humana. Agora, é evidente que acho que nós, como sociedade, devemos fazer tudo o que está ao nosso alcance para criar situações em que possamos dar às pessoas uma outra forma de poderem viver estas questões, mas ao mesmo tempo não podemos proibir estas formas, que são formas espontâneas... a praxe invadiu todas as universidades públicas e privadas e faz parte do quotidiano dessas universidades. Não podemos ter uma perspectiva moral ou de julgar as pessoas. Temos de perceber. Podemos ter uma opinião própria sobre isso, claro. Eu posso achar que aquela forma de poder a mim não me diz absolutamente nada. E há um número de estudantes, gigantesco, que não se revê nas praxes — esses não mandaram os seus testemunhos. Mas outros precisam.

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