Dux do Meco sabe esta quarta-feira se será julgado por crime raro

Famílias dizem estar em causa um crime de exposição ao perigo ou abandono que há duas décadas só resultava em punição quando envolvia vítimas menores de idade ou adultos especialmente frágeis. Lei mudou mas a sua aplicação continua a fazer-se sobretudo a situações com crianças.

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Acusado de um crime raro nos tribunais portugueses, o único sobrevivente da tragédia do Meco, João Gouveia, sabe esta quarta-feira se vai a julgamento. Caso o juiz de instrução criminal de Setúbal encarregue do caso não o pronuncie, as famílias das vítimas mortais já anunciaram que recorrerão da decisão. Querem saber o que realmente se passou naquela madrugada de Dezembro de 2013.

Mas essa parece ser uma missão quase tão difícil como fazer corresponder os factos ocorridos naquela praia a um delito que, até há cerca de duas décadas, só merecia punição quando envolvia vítimas menores de idade ou adultos especialmente frágeis, como idosos ou deficientes. E embora a lei tenha passado a admitir como vítimas do chamado crime de exposição ao perigo ou abandono todo o tipo de pessoas, incluindo adultos sem quaisquer limitações físicas ou cognitivas, a sua aplicação continua a fazer-se sobretudo a situações com crianças. O caso complica-se tanto mais quanto a prova deste tipo de crime passa também por aquilatar das intenções que quem é suspeito de o ter cometido.

Terá sido do dux a ideia de irem até à praia naquela noite? Terá de facto tido grande ascendente sobre os outros seis colegas da Universidade Lusófona naquele fim-de-semana? Teria bebido com eles, ou ter-se-á mantido sóbrio? Estariam os jovens conscientes da perigosidade daquele mar? Terá João Gouveia dado o alerta logo que os viu em perigo no mar ou ter-se-á afastado dali? Terá ele próprio estado também prestes a afogar-se, como conta e como relatam os médicos que o assistiram na praia? É sobretudo em torno destas questões que o juiz Nelson Escórcio vai ter de reflectir para decidir se existem ou não indícios suficientes que justifiquem levar o caso a julgamento.

Os seus colegas do Ministério Público já foram claros, e por duas vezes: tanto o procurador que em Almada arquivou o inquérito, logo a seguir reaberto a pedido das famílias das vítimas; como no entendimento da magistrada de Setúbal para quem transitou o processo, o dux era apenas mais um do grupo, e não o seu líder, e apenas a sorte o salvou do mesmo destino dos companheiros. “Não era de esperar que seis pessoas esclarecidas se deixassem manietar por um acto paranóico dum qualquer dux, prescindindo, no extremo, de lhe desobedecer”, escreveu o procurador de Almada.

Certo é que nem o seu despacho de arquivamento nem tão pouco a fase instrutória do processo que se lhe seguiu já em Setúbal permitiram fazer luz sobre alguns mistérios deste caso. Por que razão o telemóvel de João Gouveia accionou naquela noite antenas de Oeiras e da Costa da Caparica, localidades onde supostamente não esteve? Nos esclarecimentos técnicos que enviou ao tribunal a Vodafone admitiu que as condições atmosféricas possam permitir um fenómeno desse tipo. Por que motivo não havia nas roupas do dux, quando foram analisadas já vários meses depois dos acontecimentos, vestígios de sal? Isso não prova que o arguido não tenha estado no mar, garantiram as especialistas do Instituto de Medicina Legal que analisaram o vestuário.

Mensagens trocadas
Não sendo nenhum dos estudantes caloiros, caso tenham sido mandados entrar no mar por João Gouveia tê-lo-ão feito de livre vontade. É neste argumento que se estriba a procuradora de Setúbal para defender que o processo termine já aqui, sem julgamento. Um argumento que remete directamente para a lei, segundo a qual pode ser culpado do crime de exposição ou abandono quem colocar em perigo a vida de outra pessoa, “expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, por si só, não possa defender-se” ou “abandonando-a sem defesa, sempre que lhe caiba o dever de a guardar vigiar ou assistir”. Se desta actuação resultar a morte da vítima o crime é punido com até dez anos de cadeia.

Para o advogado das vítimas, Vítor Parente Ribeiro, se o que aconteceu no Meco não se enquadra nisto, então nada se enquadra. A favor da sua tese invoca as mensagens de telemóvel trocadas entre os jovens naquele fim-de-semana, que aos seus olhos comprovam a supremacia de João Gouveia perante os outros.

A doutrina que existe sobre o assunto não é, porém, tão taxativa, e exclui a existência de crime nas situações em que são as próprias vítimas a colocar-se em risco. “No caso de um acidente em que o agente abandone a vítima sem que seja previsível um perigo para a vida e a vítima, pelo seu comportamento, cause um perigo para a sua vida não subsistirá este tipo legal”, escreve, num manual sobre o código penal, o professor universitário Damião da Cunha. Também não haverá delito caso o agente tente salvar a vítima – como João Gouveia diz que ainda tentou fazer com uma das raparigas. Este tipo de crime que pressupõe que não houvesse intenção de matar quem quer que seja, mas que o seu autor tenha, apesar disso, tido noção do risco que corriam as vítimas.

Um dos poucos casos envolvendo adultos citados nos manuais de direito diz respeito a um médico condenado em 1995 pelo crime de abandono, a seis meses de prisão substituídos por multa. Encontrava-se de serviço nas urgências quando chega um homem que tinha tido um acidente. O seu estado de embriaguez levou-o a negligenciar os cuidados médicos. Comentou com um colega que não era no hospital que se curavam as bebedeiras e que devia ser dada alta ao paciente. O homem entrou em coma cinco horas mais tarde e acabou por morrer, sem que lhe tenham sido prestados cuidados médicos.

O exemplo clássico usado na doutrina para exemplificar este tipo de crime é o do guia de montanha que, guiando uma expedição, abandona um dos turistas que está naquele momento sob o seu cuidado, criando perigo para a sua vida. Quando o turista, contra as indicações do montanhista, tenha ingerido qualquer substância (álcool, por exemplo) que reduza a sua capacidade de orientação, e caso persista em continuar a expedição, podemos já não estar perante o abandono ou a exposição ao risco, defende Damião da Cunha. “Impenderá sobre o montanhista um dever de auxílio face a um eventual acidente?”, interroga. Uma vez mais depende das circunstâncias.

No único corpo que foi possível autopsiar havia vestígios quer de bebidas alcoólicas quer de cannabis. Um facto que, para o advogado das famílias, só agrava o grau de responsabilidade de João Gouveia na noite fatídica. A presença das duas substâncias no corpo de pelo menos um dos estudantes era, segundo o relatório do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, passível de “interferir na capacidade intelectual e de decisão da vítima”, nomeadamente “em sede de avaliação do risco para a sua integridade física ou vida, tendo em conta a hipotética situação de aproximação à linha de água da praia do Meco”.

Numa dissertação de mestrado que fez em 2010, a advogada Goreti Fernandes dá conta de como é de difícil provar este tipo de crime, sobretudo quando não existem testemunhas. O procurador Jorge Dias Duarte foi dos que também já se debruçaram longamente sobre o tema. “Nas sociedades modernas todos somos responsabilizados por tudo. O que leva ao aparecimento de crimes inimagináveis há uns anos”, observa. “O direito penal passou a ser a primeira arma usada, em vez de ser a última. E surgiram mecanismos de controle social que nem sempre são exequíveis”.

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