Dois telemóveis de graça por 24 meses de cárcere

O número era daqueles de desconfiar. Tinha muitos três e muitos oitos, criando um efeito gráfico hipnótico. Só podia ser telemarketing. Não atendi, mas eles não desistiram, queriam mesmo me vender algo. À sexta chamada, rendi-me:

- Boa tarde, tenho o prazer de estar a falar com o senhor Ricardo Garcia?

- Sim – respondi, subitamente sem saber se estava a confirmar o prazer do interlocutor ou o meu nome de baptismo.

- Muito boa tarde. Como tem passado?

- Bem – assinalei, lacónico. Respostas monossilábicas são ideais para abreviar o cerimonial introdutório das vendas à distância. Corta-se o caminho para se chegar ao que não importa, limitando a perda de tempo ao absolutamente desnecessário.

Neste caso, era uma oferta irrecusável: dois cartões de telemóvel, totalmente grátis, com chamadas ilimitadas, pelo mesmo valor que já estou a pagar pela televisão, telefone fixo e Internet. Bastava dizer que sim.

- E isto implica um novo período de fidelização? – indaguei.

- Sim – e desta vez o vendedor é que foi sucinto em palavras, deixando a bola do meu lado.

Não fazia qualquer sentido. Eu já tinha cumprido os 24 meses de prisão preventiva do contrato. O meu plano, subscrito há anos, estava simplesmente desactualizado. Hoje pago mais do que vale aquilo que me proporcionam. O natural seria baixarem-me a mensalidade ou alinharem os serviços de acordo com o mercado, sem qualquer compromisso suplementar. Afinal, um cliente já isento da fidelização é, em tese, uma ovelha em risco de se afastar do rebanho.

Expliquei-lhe tudo isso e ameacei bater com a porta. Mas o sector das telecomunicações é uma espécie de buraco negro mercantil, onde as leis da concorrência sofrem complexas distorções. Não há para onde fugir. Os dois anos de cárcere são a norma em todo o lado, bem como a sua renovação automática sempre que se mexe numa vírgula do contrato.

Oficialmente, este matrimónio forçado só deve existir quando houver descontos, borlas, prendas ou outras amenidades para o cliente. Todas estas generosidades estão agora agrupadas na potente palavra “campanha”, com a qual nos abordam. Uma campanha de sucesso – para a empresa, é claro – consiste numa redução dos custos para o consumidor no início do contrato e a posterior distribuição da diferença ao longo dos 24 meses de fidelidade, sem que ninguém note.

As autoridades parecem preocupadíssimas com a capacidade de engodo desse vocábulo. E propõem agora que as vantagens das campanhas constem de uma ficha de informação simplificada. Também está a ser discutida a adopção de um glossário unificado dos termos dos contratos, de modo a que o consumidor entenda o que lhe estão a impingir. Os verbetes foram rigorosamente pensados de modo a serem simples e concisos. A proposta de definição de “política de utilização aceitável” é um bom exemplo desta almejada clareza:  “Regras fixadas e implementadas pela empresa que contemplam condicionamentos ou restrições ao(s) serviço(s) contratado(s) na decorrência, nomeadamente, do plano tarifário e incluindo, quando aplicável, limitações ao tipo, ao volume ou à capacidade das comunicações abrangidas”. Tudo isso para dizer que as chamadas ditas ilimitadas afinal têm um limite.

Enquanto não aprovam a regra e a terminologia, não vou aceitar os dois telemóveis que me oferecem. Disse ao vendedor, aliás, que nem queria telefone, nem televisão, apenas Internet.

- Lamento, estou a comercializar apenas esta campanha. Mas vou anotar na sua ficha – respondeu-me ele. E nunca mais me ligaram.

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