Dois pesos e duas medidas

Nas salas de tribunal, há uma hierarquia clara quando se trata de abusos sexuais na escola. Os casos que envolvem um professor e uma aluna resultam nas punições mais graves e nas indemnizações mais elevadas.

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Cameron Clarkson era um jogador de futebol de 16 anos quando de repente se tornou o centro de uma investigação de crime sexual no seu liceu, no Minnesota. Os advogados massacraram-no com pormenores do seu passado sexual. Responsáveis da escola, num comunicado à imprensa, acusaram-no de não ter invocado a política escolar para casos de perseguições sexuais e disseram que ele se “gabou aos colegas sobre o que aconteceu”. O seu carro foi vandalizado por um desconhecido com tampões carregados de tinta vermelha e barrado com manteiga de amendoim, à qual ele é alérgico. No relvado em frente de sua casa, desenharam um pénis gigante com lixívia.

“As pessoas estavam sempre a lembrar-me de que eu arruinei a vida da pobre rapariga”, diz Clarkson.

A “pobre rapariga” era professora na sua escola. Gail Gagne, uma treinadora de básquete de 25 anos, era substituta permanente na Cretin-Derham Hall High School e faltavam dois meses para se tornar instrutora permanente de Educação Física. Um dia, quando ele saía do ginásio da escola, ela ofereceu-se para lhe dar boleia para casa. Seguiu-se aquilo que Clarkson descreve como o primeiro de uma série de encontros sexuais entre os dois durante o ano de 2008 — no carro de Gagne, nas suas casas, em hotéis. Ele diz que a relação terminou dois meses depois; na Primavera seguinte, um aluno contou o caso aos directores.

Gagne foi despedida e acusada de dois crimes sexuais com um aluno. Mas, durante a investigação que se seguiu, Clarkson foi tratado mais como agressor do que como vítima. Entretanto, Gagne teve, sob alguns aspectos, um caminho mais fácil. Negou qualquer contacto sexual com Clarkson, mas deu entrada com um tipo de recurso no qual o arguido não admite a culpa mas reconhece que a acusação tem provas suficientes para o condenar. O acordo permitiu reduzir a acusação para uma pena suspensa de um ano de prisão, uma condenação bem mais ligeira do que os possíveis quatro anos de prisão em que incorriam as acusações que ela enfrentava. (O advogado de Gagne continua a sustentar que não houve contacto sexual.)

Para as vítimas masculinas de abuso sexual, é assim que as coisas se passam. Há cada vez mais indícios de que os rapazes que se tornam presas sexuais de figuras femininas autoritárias e mais velhas sofrem psicologicamente tanto como as raparigas quando são vitimizadas por homens mais velhos. Mas nas escolas, nos tribunais e nos escritórios de advocacia, as vítimas masculinas são abertamente tratadas com dois pesos e duas medidas, segundo entrevistas com uma dezena de especialistas em direito, psicologia e trabalho social. Alguns dizem que os rapazes deveriam receber o mesmo cuidado de protecção que as raparigas; outros, que trabalham com casos destes, sustentam que os adolescentes masculinos são incentivados por hormonas turbulentas e que ficam contentes por explorar a sua sexualidade com mulheres mais velhas.

Mas todos os especialistas concordam que a distinção de tratamento às vítimas de abuso sexual não violento por parte dos professores de liceu é real. E isso é palpável: as vítimas masculinas normalmente recebem menos indemnizações em casos civis, dizem os especialistas, e as mulheres que abusam levam penas mais suaves.

Nas salas de tribunal, há uma hierarquia clara, afirmam os advogados. Os casos que envolvem um professor e uma aluna resultam nas punições mais graves e nas indemnizações mais elevadas. David Ring, advogado da Taylor & Ring em Los Angeles, escritório que tem representado vários clientes com queixas de abusos sexuais, já trabalhou em centenas de casos de professor-aluno e afirma que não é invulgar naqueles em que o agressor é um homem terminarem com sentenças de mais de um milhão de dólares (850 mil euros). Dá o exemplo de um júri que atribuiu uma indemnização de 5,6 milhões (mais de 4,7 milhões de euros) a uma estudante de liceu num caso de abuso sexual que envolveu um professor de 40 anos. O juiz condenou o professor a um ano de prisão e obrigou-o a pagar 40% pelos danos civis à aluna, que na altura dos encontros tinha 14 anos (a escola secundária Chino Valley teve de pagar os restantes 60%).

Mas nem jurados nem delegados do Ministério Público têm a mesma antipatia pelo abuso por parte de professoras, diz Ring. “‘E então? Sorte a dele.’ É assim que a sociedade olha para isto.” Segundo a sua experiência, os alunos rapazes raramente conseguem indemnizações mais altas que 200 mil dólares. Em Novembro, Clarkson resolveu o seu caso contra o liceu Cretin-Durham Hall com 75 mil dólares. O processo contra Gagne ficou por apenas um dólar.

A sua advogada, Sarah Odegaard, afirmou que a sua equipa optou por uma escolha estratégica: lutaram por uma indemnização maior por parte da escola e concordaram que Gagne ficaria com o pequeno gesto de entregar um dólar em vez de um julgamento durante o qual ela negaria a relação sexual. Em casos deste tipo ­­— com “uma jovem atraente” como arguida —, as tendências do júri não pendem para o lado da vítima, comenta Odegaard. “Não é uma tendência que queiramos reconhecer, mas temos de o fazer”, continua. “Tem havido algum êxito nos processos que envolvem professores e treinadores, mas é mais comum termos veredictos mais leves.”

As comparações exactas entre os casos são difíceis de fazer; cada caso é único. As sentenças e as indemnizações por danos morais são decididas em função do número e tipo de encontros sexuais, a idade da vítima relativamente à idade de consentimento do estado e — mal ou bem — o nível de sofrimento que a vítima manifesta durante a investigação, entre outros factores.

Mas apesar de não haver registos das disparidades nacionais na forma como vítimas masculinas e femininas são tratadas (uma das razões possíveis: os abusadores masculinos tendem a ser muito mais velhos do que as suas vítimas femininas, o que leva a penalizações maiores, de acordo com vários advogados que trabalham com casos deste tipo), toda a gente concorda que as disparidades realmente existem.

O problema, no entanto, é que nem todos vêem isso como um problema. “Acho que devem ser tratados de forma diferente”, defende o advogado de defesa Joe Friedberg, de Minneapolis. “Todos os rapazes de liceu tiveram algum tipo de fantasia com uma das suas professoras. Eu desisto desses casos e digo: ‘Eu teria adorado que isso me acontecesse.’ Não vejo os danos na vítima em casos desses.”

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As raparigas têm quatro vezes mais probabilidades de ser vítimas sexuais do que os rapazes, de acordo com o Centro Nacional de Vítimas de Crime CHRIS KEANE/reuters

Há muito mais estudos a debruçar-se sobre vítimas femininas do que masculinas, mas a investigação que há condiz com as observações anedóticas dos especialistas sobre a gravidade do sofrimento masculino. Num estudo de 2004, investigadores australianos fizeram uma revisão das histórias psiquiátricas de mais de 1600 pessoas que foram abusadas sexualmente quando eram crianças. Concluíram que tanto homens como mulheres apresentavam níveis mais altos de tratamentos psiquiátricos para problemas de personalidade, ansiedade e outros, quando comparados com a população em geral. E quase uma em quatro vítimas masculinas recebeu tratamento, comparado com 10% das vítimas femininas.

Num outro estudo de 2004, a investigadora Myriam Denov, que estava então na Universidade de Otava, conduziu entrevistas aprofundadas com 14 vítimas de abuso sexual por parte de mulheres. Tanto as vítimas femininas como masculinas deram conta de sequelas a longo prazo, incluindo depressão, dependência de substâncias, automutilação, relacionamentos disfuncionais com mulheres e até tentativas de suicídio.

“Estou farto da vida e de como ando a mentir/ Estou farto deste mundo e daquilo que tento fazer”, escreveu um rapaz de 16 anos num poema aparentemente suicida dirigido a Denise Keesee, uma professora de 32 anos do liceu de Sherwood, no Oregon, com quem teve uma relação sexual, segundo notícias da imprensa. Em Abril passado, um juiz condenou Keesee a apenas um mês de prisão por abusar sexualmente de um estudante. O seu advogado recusou-se a fazer comentários.

As raparigas têm quatro vezes mais probabilidades de ser vítimas sexuais do que os rapazes, de acordo com o Centro Nacional de Vítimas de Crime. Esse desequilíbrio tem significado que as políticas contra a agressão sexual não são aplicadas ao rapaz em cada 20 que é abusado com a mesma urgência com que é aplicada às vítimas femininas. “Riem-se deles e não acreditam”, diz Denov, o investigador que conduziu o estudo de 2004.

As vítimas são desacreditadas precisamente por serem tão raras, e a sua incapacidade de se fazerem ouvir adiciona mais uma camada ao drama. Denov adianta: “Por causa das nossas perspectivas de maternidade e afecto, as pessoas interrogam-se: ‘Como é possível uma mulher ser uma abusadora sexual?’ As pessoas não conseguem entender.”

Os sinais de erecção são também muitas vezes usados contra os rapazes. Clarkson recorda: “Perguntaram-me [os advogados] como é que uma coisa que terminou em ejaculação pode alguma vez ser considerada abuso.”

Esse é um erro frequente, segundo o psiquiatra Brian Jacks. Mesmo se um rapaz colabora na relação sexual — e se gabe disso aos amigos —, isso não significa que a experiência não tenha efeitos negativos a longo prazo. “Eles ficam a gabar-se”, diz Jacks. “Só mais tarde é que se apercebem das consequências, é que se apercebem de que foram abusados... Garanto que vai desestabilizar-lhes a vida.”

Clarkson afirma que os efeitos psicológicos da sua relação com Gagne surgiram pouco tempo depois de ter terminado. Começou a faltar às aulas, passando o dia no quarto, às escuras. Perdeu interesse nas actividades a que dava mais importância e desistiu do sonho de vir a jogar futebol na faculdade. No seu primeiro ano na Howard University, fumava bastante marijuana, bebia muito e era com dificuldade que participava em actividades sociais. O psiquiatra Raymond Patterson diagnosticou-lhe uma depressão, afirmando estar “directamente relacionada com o abuso sexual de que foi vítima”, de acordo com os documentos do tribunal.

“Há pessoas que acham que eu não posso ter sido vítima de abuso por causa da minha aparência”, afirma Clarkson. O advogado de Gagne agarra precisamente neste argumento: “Ele parece ter 35 anos e a Gail parece ter 20”, diz.

Clarkson diz ainda que a raça também leva a discriminação contra si. Ele é negro; Gagne é branca. A sociedade vê os homens negros como predadores sexuais e não como vítimas, escreveu num resumo da sua experiência. “Referiam-se a mim meramente como um corpo físico, sem preocupação com o desenvolvimento da minha mente ou da minha alma.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

 

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