Doente de 51 anos morre à espera de medicamento inovador para a hepatite C

Mulher esteve internada sete vezes em 2014 no Hospital de Egas Moniz. Filho quer apurar responsabilidades. Unidade garante que medicamento foi pedido pela primeira vez em Julho, mas a decisão final só foi tomada em Janeiro, demasiado tarde.

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O Infarmed está a finalizar um acordo com a farmacêutica para baixar o preço do medicamento e aprovar então a comparticipação MIGUEL MADEIRA

Maria Manuela Ferreira tinha 51 anos e hepatite C há duas décadas. O último ano foi praticamente passado no hospital, com vários internamentos prolongados devido à cirrose que resultou do agravamento da infecção pelo vírus que atinge o fígado. O último internamento aconteceu a 16 de Dezembro e prolongou-se até à passada sexta-feira, dia 30 de Janeiro. “A minha mãe não resistiu à espera”, garantiu ao PÚBLICO o filho da doente, David Gomes, que adiantou que a mãe aguardaria desde Fevereiro o Sofosbuvir, medicamento inovador da farmacêutica norte-americana Gilead Sciences para esta doença, com taxas de cura superiores a 90% e aprovado para a Europa em Janeiro de 2014 – mas que tem gerado polémica pelo elevado preço. A doente era seguida no Hospital de Egas Moniz, mas foi transferida dois dias antes de morrer para o Hospital de Santa Maria.

“Tudo isto revolta e vou até às últimas consequências, até porque a minha mãe tinha hepatite C por causa de cirurgias e transfusões que fez no Serviço Nacional de Saúde. Não teve culpa nenhuma e só não falei do caso antes porque infelizmente achava que tínhamos mais tempo, pois apesar de ela todas as semanas tirar litros de líquido da barriga havia pessoas mais velhas que sobreviveram mais tempo. Agora que sirva para ajudar outros”, acrescentou David Gomes, que vai pedir cópias do processo clínico para estudar as hipóteses de avançar com uma acção judicial. Garante que a necessidade do medicamento foi abordada durante as consultas, mas sempre sem data à vista. O PÚBLICO tentou saber junto da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde se o caso já chegou a este organismo e se deu origem à abertura de algum processo de averiguações, mas não obteve resposta.

O conselho de administração do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental (que integra o Hospital de Egas Moniz), numa resposta escrita ao PÚBLICO, confirmou que a doente era seguida há nove anos no Serviço de Gastrenterologia, mas garante que desde 2008 que lhe propuseram os medicamentos convencionais para a hepatite C “com resultados muito favoráveis para o genótipo que a doente apresentava, terapêutica esta que a doente sempre recusou, tendo a doença evoluído, sem tratamento específico, durante cerca de seis anos”. Sobre este ponto, David Gomes contrapôs que a mãe tentou os medicamentos tradicionais, mas que abandonou “pelos muitos efeitos secundários”.

De acordo com o Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental (CHLO), a doente esteve internada sete vezes em 2014, já com “doença hepática muito avançada, com prognóstico reservado”. O hospital assegurou que o primeiro pedido para o Sofosbuvir foi recebido pela Comissão de Farmácia e Terapêutica do centro hospitalar em Julho de 2014, que por “motivos clínicos” pediu à Gilead para fazer uso compassivo do Harvoni, um fármaco do mesmo laboratório, que contém Sofosbuvir e outra substância e que ainda não está aprovado para a Europa. O pedido foi aceite em Janeiro, data em que a doente já estava “internada em situação extremamente crítica, e por acentuada deterioração do seu estado clínico, com necessidade de cuidados intensivos do foro gastrenterológico”, pelo que foi transferida para Santa Maria, “onde existe a única unidade de cuidados intensivos deste tipo no país”.

Do lado da Gilead, o laboratório diz que recebeu a 4 de Novembro por parte do CHLO “um pedido de acesso, sem custos, ao medicamento Harvoni”, mas que “nessa data não existia enquadramento legal para o fornecimento de medicamentos sem custos”. A Gilead solicitou esclarecimentos à Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) e, tendo recebido resposta a 31 de Dezembro, “comunicou a 9 de Janeiro ao CHLO a sua disponibilidade para fornecer o medicamento para a referida doente sem custos para o Serviço Nacional de Saúde”. Mas “até à presente data a Gilead Sciences não recepcionou qualquer nota de encomenda”.

Acordo em breve
Até agora, em Portugal têm estado a ser tratados com os fármacos inovadores apenas os casos de risco iminente de vida, de acordo com os critérios definidos pelo Infarmed com um conjunto de peritos, que abrangem casos de falência hepática ou de cirrose avançada. A SOS Hepatites, associação que representa os doentes, tem denunciado que o medicamento é negado mesmo a quem está em risco de vida. Em todos os casos, a aprovação de utilizações especiais por parte do Infarmed só é dada ou negada depois de os hospitais submeterem os pedidos.

A notícia chega numa altura em que o Infarmed fez saber que estará para muito breve um acordo com a Gilead para aprovar a comparticipação do fármaco a um preço inferior aos 42 mil euros por tratamento que estavam até agora em cima da mesa, depois de um valor inicial para o país de 48 mil euros. De acordo com o que o PÚBLICO apurou junto de fontes do sector, ainda não é certo que tipo de protocolo será feito, mas a proposta passa por conseguir baixar o valor pago tratando um número mais alargado de doentes. Esta foi, aliás, a solução encontrada por outros países europeus.

A um ritmo de 5000 doentes a receberem o novo fármaco por ano, o país conseguiria tratar todos os 13 mil doentes com hepatite C registados nos hospitais públicos até 2018 e, ainda, dar resposta aos novos casos que fossem entretanto diagnosticados – visto que a doença pode ser assintomática durante mais de dez anos. Os dados da Organização Mundial de Saúde apontavam para que o Portugal tivesse entre 100 mil e 150 mil pessoas infectadas, na maior parte dos casos sem saberem, mas dados recentes do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto indicam que serão no máximo 50 mil. Em 25% dos casos a doença, que resulta normalmente de contacto com sangue ou fluídos corporais infectados, tem cura espontânea, pelo que algumas pessoas nunca chegam a saber que estiveram infectadas.

Um grupo de doentes juntou-se também para avançar, durante Fevereiro, contra o Ministério da Saúde por lhes estar a ser negado o fármaco. O objectivo da providência cautelar é obrigar o Ministério da Saúde a facultar aos doentes o acesso a estes tratamentos. Do lado das unidades de saúde, os cinco maiores hospitais do país também se juntaram numa acção, mas desta vez contra a Gilead, que consideram “hostil” e acusam de estar a abusar de uma posição dominante.

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