Doce recolhimento

O fingimento da curiosidade é a pior das hipocrisias.

Às vezes saio de casa e sinto-me como um actor a desempenhar um papel que não é ser eu. Ser eu torna-se cada vez mais difícil enquanto me assusto com a curteza decrescente da vida, como um gatinho que salta quando se vê ao espelho. Mais do que estúpido, tem razão: é novo e não está à espera de se ver.

Nem eu. Não tenho essa desculpa. Dou comigo a representar um eu, interessado pelas chatas experiências alheias que só me narram por causa da minha insistência erradamente treinada como sendo bem educada.

O fingimento da curiosidade é a pior das hipocrisias. A curiosidade está para o conhecimento como a alegria está para a vida. Corromper a curiosidade ? através, por exemplo, das boas maneiras ? é um vício meramente burguês que denuncia uma trágica falta de egoísmo.

O recolhimento em casa, seja sozinho ou com a única pessoa que se ama, é uma fuga para o princípio da viagem. Voltar a casa é a maior viagem de todas. Basta um dia num lugar, perto de casa, onde se "está em casa" sem se estar, para perceber que só em casa, sozinho ou sozinhos, é que se está bem.

Numa idade em que viajar (coisa tão fácil de fazer e facilmente lembrar) é considerado uma virtude, faz-nos bem pensar em voltar antes de partir.

Nenhum regresso é tão doce como a decisão de não partir. Mas não há regresso melhor do que aquele que responde "sim", quando partimos, à nossa pergunta se devemos ou não partir. E depois, pouco depois, regressar. Arrependidos ou não.

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