Distúrbios nas Festas de Cascais “podiam ter sido uma mortandade”

Câmara e PSP minimizam incidentes durante concerto de Anselmo Ralph, que fez pelo menos três feridos

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Miguel Manso

Resultaram em pelo menos três feridos, e num susto para quem estava a assistir, os distúrbios do concerto de encerramento das Festas do Mar, anteontem à noite, em Cascais, com o cantor angolano Anselmo Ralph. A prontidão com que o artista interrompeu o espectáculo para chamar a polícia contribuiu para que os desacatos não alastrassem.

“Podia ter sido uma mortandade”, avisa um dos administradores do Hotel Baía, Jorge Sampaio, para quem só a irresponsabilidade pode ter levado a câmara municipal a juntar 50 ou 55 mil pessoas na baía de Cascais. Mas tanto a PSP como o presidente da autarquia, Carlos Carreiras, minimizam o sucedido, apesar das inúmeras imagens televisivas mostrarem que aos distúrbios defronte do palco do concerto se seguiram algumas escaramuças, com os agentes a perseguirem e a algemarem vários jovens, quer defronte do hotel quer na Praia dos Pescadores, ali mesmo ao lado.

 Várias pessoas foram levadas para a esquadra, algumas delas mesmo antes dos confrontos que levaram à interrupção do concerto. A polícia assegura, porém, que “não fez detenções”, tendo-se limitado a “identificar quatro pessoas”. Sobre o número de agentes envolvidos na operação, que incluiu elementos da Unidade Especial de Polícia, um porta-voz do comando metropolitano, Rui Costa, mostra-se lacónico: “Nunca divulgamos o efectivo destacado para nenhuma acção operacional. É uma informação de carácter reservado”. Feridos contabilizados pela polícia foram três, um dos quais com gravidade, contando-se entre eles um agente das forças de segurança, que apenas sofreu arranhões. Mas foram mais as pessoas a necessitar de assistência, parte das quais por se terem sentido mal no meio da confusão, para a qual até crianças foram levadas.

Mas o que se passou ao certo? Terão os distúrbios sido causados no quadro de um meet, um encontro de jovens semelhante ao que teve lugar junto ao centro comercial Vasco da Gama? Carlos Carreira assegura que não, e conta que tudo aconteceu por causa de um saco pousado no chão. A multidão era mais que muita, e romper por entre as pessoas tornava-se tarefa praticamente impossível. Havia filas de automóveis de quilómetros para aceder ao centro da vila e assistir às festas. Um grupo de jovens terá tentado furar por entre a multidão e pisado, sem querer, a mala que uma espectadora havia pousado no chão, defronte do palco. Quando se travou de razões com os rapazes, o marido e o filho, já adulto, intervieram, e ter-se-á gerado o desacato. O marido, que sofreu um corte nas costas, foi o ferido mais grave da turbulenta noite. “Foi uma situação pontual, uma rixa entre dois indivíduos”, repetiu o autarca.

O cenário presenciado por Anselmo Ralph a partir do palco foi, porém, ligeiramente diferente: “Vi um tumulto de jovens, ali na confusão, a brigar. E havia muitas crianças ali no meio”. Ciente do que podia vir a suceder, o cantor já tinha iniciado o espectáculo pedindo paz à assistência. Mas de nada valeu. De um momento para o outro dezenas de pessoas começaram a fugir, em pânico, por um corredor de segurança aberto no meio da multidão compacta pelas autoridades, que serviu também para fazer passar as ambulâncias.

A observar o desenrolar dos acontecimentos do terraço do hotel, Jorge Sampaio conta o que viu: “Vi diversos desacatos mesmo antes daquele que deu origem aos feridos sem que a policia lá pudesse chegar célere, vi pessoas e crianças a entrarem pela praia adentro a fugirem do pânico instalado, vi ambulâncias a quererem subir a avenida e a ficarem bloqueadas tal era a imensidão de pessoas, vi crianças e pessoas com o medo espelhado no rosto”. Colocou este relato na página do Facebook da autarquia, a que muitos munícipes recorreram ontem para mostrarem o seu desagrado para com a câmara municipal e a sua desvalorização do sucedido.

“Vi pessoas e jovens que nada tinham a ver com desordeiros a levar cargas da policia, pessoas e famílias a serem insultadas e ameaçadas, vi jovens com garrafas de vidro a beberem desalmadamente e depois da garrafa vazia a atirarem-na para o meio da multidão”, descreve o administrador do Hotel Baía. Cerca de duas dezenas de pessoas que entraram pelas traseiras e se escapuliram para o último andar para verem melhor o concerto tiveram de ser dali retiradas pelas autoridades.

Usando também este terraço como ponto de observação privilegiado, alguns graduados da PSP iam transmitindo informações aos colegas que estavam cá em baixo. Jorge Samapaio diz que lhe confidenciaram que, se tivessem voto na matéria, jamais permitiriam que um evento destes tivesse lugar na baía de Cascais, por causa da falta de condições do local. Um agente ouvido pelo PÚBLICO nessa noite expressou a mesma opinião.

Entre os jovens ouviam-se acusações de racismo. “Curiosamente, das cinco pessoas levadas para dentro da esquadra quatro são de raça negra e uma causasiana”, observava um rapaz, garantindo ter visto os detidos a serem espancados. “Os polícias dizem que foram ofendidos verbalmente. Não sei se é verdade”, observava.

“A gente somos do ghetto”, observava uma estudante de Hotelaria do Vale da Amoreira. “E os bófias gostam muito de atrofiar connosco. Têm de aprender que somos como uma família. Se batem num de nós...”

Os confrontos podiam ter assumido muito maior gravidade, porque o local onde as festas se realizam há décadas não tem condições de segurança suficientes, diz também a vereadora do movimento independente Ser Cascais, Isabel Magalhães. Uma opinião que é partilhada pelo seu colega comunista Clemente Alves. Na vereação socialista não houve ninguém que comentasse os acontecimentos.

Isabel Magalhães esteve nas festas na terça-feira, e o cenário com que se deparou chegou-lhe. “Aquilo já estava completamente descontrolado. Havia garrafas partidas no chão e gente de litrosa na mão. A quantidade de gente já era inacreditável. Apanhavam-se pedradas só de ali passar, tal o cheiro a charros. Era um inferno, tive medo”. Para a autarca, eventos como este deviam ser transferidos para o autódromo, ou então para o hipódromo, até para evitar que quem mora na vila fique bloqueado “duas e três horas” no trânsito.

Não é possível evacuar muita gente com rapidez de um local como a baía de Cascais, corrobora Clemente Alves, ressalvando que os distúrbios podem ter sido potenciados pela actuação das forças de segurança. “Subjacente a estes actos está o descontentamento de franjas da juventude, que não encontram outra forma de manifestar o seu protesto”, salienta.

“À entrada dos estádios de futebol as pessoas são revistadas e os indesejáveis afastados”, torna Jorge Sampaio. “Aqui não existe controlo de espécie alguma. Qualquer pessoa pode ser portadora de navalhas, pistolas, soqueiras... bastava a multidão ter entrado toda em pânico para as pessoas serem espezinhadas. Podia ter sido uma mortandade”.

Anselmo Ralph ainda retomou o espectáculo, mas deu-o por terminado logo a seguir: “Não podemos festejar quando há gente ferida”. Mesmo assim, meia hora depois, ainda o cenário não estava pacificado e já o fogo de artifício rompia o céu negro. “Não são dois indivíduos que vão estragar as Festas do Mar”, insistia o presidente da Câmara de Cascais.
 

 

 

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