Decadência

Opinião do geógrafo Álvaro Domingues.

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Nelson Garrido

Aumenta cada vez mais o número de assuntos de que se fala quando se fala do aumento dramático do envelhecimento da população portuguesa, da emigração, da quebra da natalidade, do despovoamento de vastíssimas áreas do país, da estagnação do emprego, do empobrecimento, do encerramento de escolas, hospitais, tribunais e outros serviços públicos, dos incêndios, da incompetência do governo, da dívida, da crise… . O diagnóstico caminha rapidamente de um somatório de factos mais ou menos isoláveis (todos negativos, em qualquer caso), para uma molhada impossível de desatar para que se possa explicar uma vara de cada vez como na conhecida parábola bíblica. Quer isto dizer que a embrulhada negativa dos assuntos interligados produz um efeito de opacidade e de ameaça cujo resultado só pode ser o sentimento de decadência. Já aconteceu mais vezes mas a história não se repete.

Fartos dos governantes, das tribos partidárias, do desgosto futebolístico, da deprimência televisiva, dos empregos que não há, da Europa, de listas de palavras ocas, da sustentabilidade à racionalização, dos impostos, do raio que o parta, o fecho das escolas já quase não interessa nada. De resto, as crianças são uma espécie em vias de extinção. Instalou-se um efeito de saturação, um estado de torpor que já nem sequer admite explicações ou mentiras novas: é o “interior”, são os mercados, as mudanças climáticas, a globalização, o défice de empreendedorismo…

Quando não são estas palavras ocas, são modos insuportáveis de denominar as coisas (mobilidade para significar despedimentos; harmonização para significar cortes; flexibilização para significar salários miseráveis, etc.) e outras retóricas onde se misturam coisas incompreensíveis na sua total desformatação ideológica como este pseudo-liberalismo que prega a decomposição das coisas públicas e a sobrecarga de impostos, ou o santíssimo mercado e a iniciativa privada para canibalizar o Estado. Não admira por isso que a sociedade se ponha contra o próprio Estado considerado, no mínimo, como ladrão ou inimigo.

Quando eu andava na escola no tempo da outra senhora, fazíamos redacções, por exemplo acerca do que queríamos ser quando fossemos grandes (os nossos pais e vizinhos emigravam para França, claro, e a nossa estimada elite pensante achava que eles ora eram heróis que salvavam as contas nacionais, ora grunhos que faziam casas horríveis. Gente linda!), ou se gostávamos da nossa escola:

“Eu gosto muito da minha escola. As carteiras estão quase todas vazias e a minha escola vai fechar. A professora disse que iam fazer aqui uma casa mortuária porque há mais mortos que meninos. Eu não gosto de mortos, só nos filmes e nos desenhos animados. Eu e os outros três meninos vamos para uma escola nova chamada agrupamento escolar que tem um autocarro que começa a dar volta ao concelho às sete da manhã para apanhar todos os meninos do tal agrupamento. É como quando se recolhiam as cabras para a vezeira ir pr’ó monte, disse a minha avó que só fala tipo antigamente. Eu não me importo. Depois durmo no agrupamento. Quando o agrupamento tiver também só três ou quatro meninos, o autocarro leva-nos para outro agrupamento onde estaremos quatro dias da semana em camaratas porque é muito longe para vir a casa. Quando for grande, o agrupamento já deve ser fora de Portugal como o agrupamento onde estão os meus pais e quase todos os adultos da minha terra. Chamam-se emigrantes e os nossos governantes dizem que é bom emigrar. Porque é que os nossos governantes não saem do agrupamento deles para emigrar? Conheciam terras novas, outras culturas com internet, outros governantes fixes e assim. Pronto.”

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