De que falam os não crentes a uma plateia de católicos? De crise e de muita solidão

Idosos que morrem em casa sem que ninguém se aperceba. O “totalitarismo” da economia. O futuro como “dimensão cancelada do tempo”. O “silêncio dos sensatos”. Os não crentes inquietaram os católicos – que querem ser desafiados, porque “a fé não é um refúgio apaziguador”.

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Miguel Madeira

“Se é mulher e não procura a felicidade, nem amorosa, sexo ou esperança, se apenas deseja morrer, mas não em solidão, ligue-me.” O anúncio vinha num jornal e saltou à vista do sociólogo José Machado Pais. O professor universitário levou um dos seus temas de eleição, a solidão, à iniciativa Escutar a Cidade, que arrancou na quinta-feira em Lisboa e se prolonga até Junho. A ideia é que não crentes digam o que esperam da comunidade cristã. José Machado Pais falou da sua solidão, da dos outros e recuperou a história da amizade que fez com um sem-abrigo. “Não se deixa um amigo na rua”, contou.

A música Jesus' Blood Never Failed Me Yet, no começo, enche a sala, a pedido do antropólogo, teólogo e compositor Alfredo Teixeira. Uma peça musical criada pelo contrabaixista Gavin Bryars, que fez um arranjo a partir da voz de um sem-abrigo. Na versão que se ouve no encontro junta-se a de Tom Waits.

“A voz não vem de um concurso de talentos, não corresponde aos estereótipos comerciais nem aos padrões de beleza mais reconhecidos. O paradoxo de uma voz banal, frágil, que transporta uma narrativa cristã de confiança”, diz Alfredo Teixeira acerca deste “canto que vem da rua, mantido na sua crueza”. Uma voz anónima que não chegou a ouvir a música criada. Quando Gavin Bryars procurou aquele homem, já tinha morrido.

Acto simbólico: uma voz anónima começa a dar espessura à conferência. Esta termina com a história da amizade entre um sem-abrigo e José Machado Pais, autor, entre outras obras, do livro Nos Rastos da Solidão. Deambulações Sociológicas (2006), que já fez correr muita tinta. Nem sempre os oradores, entre os quais o crítico literário António Guerreiro e a psicóloga social Benedita Monteiro, deixam mensagens directas à Igreja. Alguns levantam questões, desafios, reflexões relacionadas com a sua área de trabalho.

José Machado Pais, por exemplo, recorda os idosos que vivem sozinhos. “Sabiam que uma boa parte dos cadáveres que ficam nas morgues sem que ninguém os reclame são de idosos? Dá que pensar.” Lembra as páginas que a imprensa escreve, volta e meia, sobre quem morre em casa e, em alguns casos, só se descobre muito depois pelo “cheiro da morte”. Inês, conta, esteve morta numa banheira mais de três anos. Nenhum dos cinco filhos a procurou, nem os vizinhos. As cartas e a publicidade amontoaram-se na caixa do correio. Os sinos decorativos continuaram pendurados à porta, como se fosse Natal há três anos.

Numa outra história, de que não se esqueceu, as contas da água e da luz deixaram de ser pagas, o Estado penhorou a casa. Foi assim que se descobriu que uma pessoa “jazia na cozinha, com dois pássaros mortos na gaiola e o esqueleto do seu cão” ao lado. Durante nove anos.

Nenhum livro ensinou tanto a Machado Pais o que é a solidão como a resposta que um sem-abrigo lhe deu. Passou as mãos pelas “longas barbas” e disse-lhe: “A solidão é um sentimento que as pessoas têm no coração. Normalmente, parte de um sentimento, está em nós. O que interessa é senti-la de facto, não é expressá-la por palavras. Mas senti-la no nosso próprio ser, naquilo que somos.” Machado Pais já falou muitas vezes destas histórias, que recolheu nas ruas, e que o fizeram escrever Nos Rastos da Solidão, mas fez questão de recuperá-las neste encontro dirigido aos católicos.

Remorsos
Há tempos, o docente doou um casaco usado a um sem-abrigo: “Agora, sempre que passo pelo meu velho casaco, invejo-o pela relação de intimidade que tem com o sem-abrigo. Lamento não poder fazer a biografia da nova vida do meu velho casaco para lhe descobrir a nova identidade e, sobretudo, a identidade de quem o veste.”

Entre os sem-abrigo que já conheceu, lembra-se particularmente de José, que frequentava a Igreja São João de Deus, em Lisboa, e a quem dedicou Nos Rastos da Solidão. Andava sempre com a Bíblia no bolso do casaco, não tinha relógio, mas era bastante pontual na hora das missas. Teve alguns internamentos no hospital Júlio de Matos e, numa dessas vezes, Machado Pais soube quando iria ter alta hospitalar. O professor quis garantir-lhe um sítio para dormir, informou-se e disseram-lhe que José poderia ir para o Centro de Acolhimento de Xabregas.

Agora que tinha saído do hospital, queria dar-lhe um abraço. Foi procurá-lo, sabia que o encontraria na igreja. O hospital tinha-lhe dado um fato, até tinha um lenço “aristocrático” na camisa. Perguntou-lhe: “José, onde vais dormir?” “Por aí”, respondeu-lhe. O sociólogo falou-lhe do centro de acolhimento. José aceitou. Apanharam um táxi e foram para Xabregas. “Lá chegados, o olhar vivo do José começou a olhar à volta, tudo tentando captar. Nisto, dois homens começaram a discutir e logo depois agrediram-se a soco. José ficou nervoso e em silêncio. Vira-se para mim e diz-me ‘Como é que eu vou daqui à igreja? Fica muito longe.’”

Não quis ficar. Chamaram novamente um táxi. “Onde queres ficar, José?” “Ao pé da minha igreja.” Eram já quase nove da noite e Machado Pais tinha de regressar a casa para terminar um trabalho. Deixou José lá, como ele tinha pedido, em frente à igreja. Abraçaram-se e o professor afastou-se. “Ele ficou imóvel, em silêncio e, de vez em quando, dizia-me adeus. Começou a cair uma chuva miudinha. Cada vez mais persistente. Acelerei o passo como se fugisse de mim mesmo. E cheguei a casa, como dizer? Com a alma cheia de remorsos. Tinha deixado um amigo na rua. E não se deixa um amigo na rua. Nessa noite fui invadido, eu próprio, por um sentimento de solidão. Dei voltas na cama e não consegui dormir. Com José, descobri que solidão é um desencontro com outros ou com nós mesmos.”

No início do encontro, o jornalista Jorge Wemans, que faz parte do grupo de organizadores católicos, diz que estão ali para ouvir os não crentes e para serem desassossegados por eles. “Na profundíssima desestruturação social, cultural e societária em que nós, os católicos, participamos e de que também somos autores, a fé não é um refúgio apaziguador, um abrigo confortável de auto-ajuda, mas sim uma companheira sempre inquieta e insatisfeita, capaz de apontar o intolerável, firmar valores e inspirar comportamentos e atitudes, de gerar respostas em contracorrente e de manifestar o repúdio do inaceitável.”

A iniciativa Escutar a Cidade inclui um conjunto de encontros mensais, até Junho, sempre a uma quinta-feira, entre as 19h e as 21h, no Forum Lisboa. Organizado por um pequeno grupo de católicos, entre os quais se encontram António Marujo, autor do blogue Religionline, Jorge Wemans, e a professora aposentada da Escola Superior de Educação de Lisboa Conceição Moita, conta com o apoio de mais de vinte associações, movimentos e congregações religiosas. “Neste processo cabe aos católicos ouvirem, acolherem e meditarem no que lhes é comunicado”, lê-se no texto de apresentação da iniciativa, que se insere no Sínodo da Diocese de Lisboa. As sínteses de cada encontro serão entregues ao secretariado do Sínodo e “poderão ser pontos de partida para reflexões posteriores de grupos e comunidades”.

O próximo é a 12 de Fevereiro. Será sobre Política, participação e democracia e tem confirmados os nomes do jornalista João Pacheco, do docente universitário Viriato Soromenho-Marques, da ex-deputada e socióloga Ana Drago e da deputada socialista e presidente da Junta de Benfica Inês Drummond. Nos meses seguintes, os temas serão Dinâmicas Sociais (Nascer, ser jovem, envelhecer), com o geógrafo João Serrão, a filósofa Olga Pomba, a psicóloga Maria Saldanha Ribeiro e a demógrafa Teresa Rodrigues; Pobreza, emprego e crise financeira; Ciência e conhecimento; e Linguagem, espiritualidade(s), sexualidades e convicções.

“Crise é forma de governo”
O primeiro orador deste encontro foi o crítico literário António Guerreiro. Partem dele as interpelações mais directas à Igreja: “A experiência deste tempo, do nosso tempo, não é qualquer coisa que a Igreja se possa dar ao luxo de escolher, escolher comprometer-se com ele ou escolher não se comprometer com ele.”

Guerreiro usou o vocabulário dos “lugares-comuns”: crise, economia, futuro, modo de vida, política, precariedade e trabalho. “A crise, tal como ela nos é apregoada hoje, tornou-se uma forma de governo, pura e simplesmente. Uma forma de dominação e uma forma de governar. É um método, uma questão metodológica para governar. Através desta espécie de palavra de ordem que é a crise, o que nos é dito é que o estado de excepção se tornou regra.” Sobre a economia, considerou que esta “estendeu o seu poder a todos os domínios” da vida social e política: “Não há nada hoje que se escape à economização integral das relações humanas. E este totalitarismo da economia tem tido um efeito absolutamente nefasto que é o da despolitização generalizada da sociedade. A hegemonia do económico faz com que a vida política e a governação política se tenham tornado meramente gestionárias. Gerir aquilo que existe e, portanto, anular todo o campo das potencialidades.” Citou O Capitalismo Como Religião, de Walter Benjamin, recordando que o filósofo dizia que o capitalismo precisava de ser visto e analisado como religião: “Era a mais feroz e a mais fundamentalista das religiões, porque não conhecia pausas, dias feriados e também não conhecia o princípio da redenção.”

António Guerreiro não esquece o tempo futuro, por ser “aquilo de que, de alguma maneira, fomos espoliados: hoje alguém na casa dos 20 ou dos 30 anos não projecta absolutamente nada no futuro. O futuro é uma dimensão que foi cancelada do tempo.” E “para se compreender o que significa a palavra futuro é preciso antes saber o que significa uma outra palavra que estamos habituados a usar apenas na esfera religiosa, que é a palavra fé”: “Sem fé ou crença, não é possível o futuro, há futuro somente se podemos esperar ou crer em algo.”

E recorda uma afirmação de Hannah Arendt, de 1958, que considera espelhar o que se passa: “O que temos à nossa frente é a perspectiva de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho. Isto é, privados da única actividade que lhes resta. Não podemos imaginar nada de pior.” Como não pretende, porém, “fazer o elogio do trabalho”, António Guerreiro defende que é necessário “pensar para além da sociedade de trabalho”. Reclama que a Igreja o faça. Que tente “pensar para além deste totalitarismo que é o da sociedade do trabalho”: “A Igreja sabe muito bem o que é ócio, o lazer, a contemplação, sabe muito bem o que significa o trabalho como servilismo.”

Entre os não crentes convidados, está ainda Maria Benedita Monteiro, professora do ISCTE, hoje agnóstica, apesar de ter tido “uma educação cristã conservadora” e “uma adolescência e juventude católica militante” em várias instituições e movimentos. Mas depois entrou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, envolveu-se na associação académica, fez leituras, teve discussões com colegas, ganhou “consciência de que havia uma situação política em Portugal nos anos 1960, a guerra colonial, a revolta estudantil de 1962, a passagem curta pela prisão”, a assinatura de manifestos de católicos e não católicos contra a ditadura. Demasiadas inquietações e interrogações que lhe valeram “avisos” da Igreja Católica.

O primeiro foi em 1959: “Dado o seu envolvimento em actividades de natureza política naturalmente prejudiciais à sua função de boa catequista desta paróquia fica dispensada desse serviço”. O segundo foi em 1962: “Dado o seu envolvimento em actividades de natureza política condenadas pela Igreja, deve fazer a sua opção. Ou continua na Juventude Universitária Católica Feminina e se desliga da Associação Académica desta faculdade ou devolve o seu emblema e considera-se fora deste movimento católico”.

Benedita Monteiro devolveu o emblema. E continua com inquietações até hoje. Di-lo, no início da sua intervenção, sobre temas como o futuro da juventude, o que pensam os jovens, imigração, discriminação. No fim, repete: preocupa-a “o silêncio dos sensatos”.


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