De peixeiro a rei dos crocodilos

Manuel Guimarães foi a Moçambique por três meses para pescar camarão e ficou 22 anos. Construiu uma fábrica para processar a colheita, abriu uma loja para a vender. Depois vieram milhares de bois, ovelhas, cabritos. Mas é no silêncio perturbador de quase 30 mil crocodilos que se sente em casa.

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Chegou à Beira com data marcada para regressar. Vinha por três meses – o tempo suficiente para ver com os próprios olhos o milagre da multiplicação que lhe prometiam em Portugal. Saiu do aeroporto e pediu ao taxista que o deixasse na praia. Enterrou os pés na areia, uma mala em cada mão, e deixou-se estar. O camarão, naquela altura, caía mais do que cai a chuva. E os três meses que Manuel Guimarães planeara ficar em Moçambique transformaram-se em 22 anos.     

Este poderia ter sido, afinal, um infeliz acaso. Porque nem a chuva, mesmo aquela que cai anarquicamente, dura para sempre. E o mar que expelia camarão acabou por ir secando. Mas este empresário português, que deu de frente com aquele mar pela primeira vez aos 38 anos e ficou rendido à sua fertilidade, teve a habilidade de fazer de si mesmo o milagre que lhe haviam prometido.

Pescou, montou uma fábrica para processar e uma loja para vender o que pescava. Começou a criar gado e, depois, crocodilos, que alimenta com o peixe que pesca e com baratas – o seu projecto mais recente. Dos crocodilos extrai carne, que exporta na maioria, e a pele. Há malas e sapatos à vista, no escritório no centro da cidade, e está tudo dito. Em breve será da sua fábrica, e não de Portugal ou de Itália, que sairão aquelas malas e sapatos, com destino à loja que quer abrir em Maputo. Lá à frente está uma ideia ainda mais ambiciosa e já em estudo: começar a vender sangue de crocodilo, que alguns países estão a usar na prevenção do cancro.

Manuel Guimarães diz que tem andado “no fio da navalha” nestes últimos 23 anos, sempre a pisar o risco. Foi o primeiro a exportar mangas da Guiné Bissau para Portugal porque teve o “atrevimento” de pedir a Nino Vieira, antigo Presidente da República, que o deixasse aproveitar as árvores que tinha numa quinta. Também foi o primeiro a importar sémen e embriões de bois para Moçambique, assim como carapau pescado em Portugal. São só alguns exemplos. Arrependimentos? Poucos. Talvez a investida no negócio do paintball, que fracassou por causa do fardo emocional que tem o conflito armado no país.

Começou com uma dezena de trabalhadores. Hoje chegam a ser 500 e muitos aprenderam tudo o que sabem ali, com ele ao lado. Na fábrica, na loja, na quinta, nas pastagens, nos tanques dos crocodilos. Sabe que já investiu perto de dez milhões de dólares nestas aventuras. Não sabe quando, nem como irá passar o testemunho. Está com 61 anos, mas é à sua volta que tudo gira ainda – e a uma velocidade alucinante.

O encontro

São quase 10h quando chega ao aeroporto da Cidade da Beira. Tem o rosto bronzeado, mas menos queimado do que seria expectável para uma pele tão branca em confronto com o impiedoso sol africano. Os olhos são de um enorme azul, envolvidos por cabelo e barba grisalha. É um homem robusto, sólido. Traz um colete cinzento, que não cobre por completo um pormenor indispensável: um crocodilo bordado ao peito (a imagem de marca da Lacoste). Coincidência? Dificilmente. Aliás, numa troca de emails alguns dias antes, a filha de Manuel já nos tinha avisado que iríamos ao encontro do “rei dos crocodilos”.  

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Não veio sozinho. Joaquim ainda hesitou alguns minutos antes de saltar do banco traseiro do jipe branco. É filho do empresário, tem três anos. Começa tímido, agarrado às pernas do pai, a esquivar-se ao contacto, mas haverá de revelar-se pouco dado a papéis secundários.

No caminho até ao centro da cidade, o empresário conta como foi parar àquela praia. “Fui vendedor de uma empresa ligada a produtos do mar. A certa altura, o administrador quis que vendesse caldeirada de peixe. Vendi tanta que depois já não havia mais. Foi aí que decidi montar a minha própria empresa.” A Soguima, que criou com o irmão mais novo, António Guimarães, nasceu há 30 anos, curiosamente em Guimarães. E houve um momento em que decidiram que era preciso estar onde estava o camarão.

“Cheguei em Fevereiro de 1994 e em Abril já estava a exportar para a África do Sul. As coisas em Portugal estavam a correr bem, mas em Moçambique estavam muito melhores”, explica. Quando viu chegar à costa “aquele camarão fresquinho”, percebeu que tinha de investir. A ideia inicial era comprar o produto já processado para exportar para Portugal, mas Manuel decidiu antes abrir uma fábrica. Nasceria assim a Prapesca – Companhia de Pescas de Moçambique.

No início, tinha 23 trabalhadores. Hoje são mais de 200, a que se juntam outros 100 na altura de maior pesca. Começou por vender camarão para a África do Sul, até que dois anos depois conseguiu a autorização para exportar para a União Europeia. E enfim percebeu que o negócio podia fazer-se nos dois sentidos. Já está a importar anualmente 1500 toneladas de carapau português para o mercado moçambicano, assim como sardinha. Da Beira estendeu-se até Nampula, uma província a norte do país, onde comprou mais duas empresas.

Os afectos

Manuel conta que, há 15 anos, chegavam a processar 400 toneladas de camarão por ano, mas este ano, com três barcos de pesca a lançar-se ao mar, terão de fazer um esforço para atingir as 60. Quando enterrou pela primeira vez os pés no areal, havia 44 barcos artesanais. Hoje há apenas três. “Agora ir à pesca é como comprar um bilhete de lotaria”, diz. Perante a escassez, já tem em andamento um projecto de quatro milhões de dólares para criação e engorda de camarão em viveiros.

É certo que o empresário português preferiu não ficar entregue à sorte. Os seus barcos passaram a trazer não só o camarão que o mar ainda lhes oferece, mas também as mais variadas espécies – polvo, peixe pedra, corvina. E o gelo que produziam e usavam para a conservação transformou-se num negócio alternativo, dado o elevado consumo de bebidas alcoólicas no país, nomeadamente whisky. Neste momento, já vendem dez toneladas por dia.

Mas a verdadeira multiplicação milagrosa ainda estaria para vir. Quatro anos depois de chegar à Beira, da “necessidade de investir” nasceu a Agripec, onde faz criação intensiva de bovinos, caprinos e suínos em 11 mil hectares de terra e dá emprego a mais 200 pessoas. Começou por importar alguns bois do Zimbabué e da África do Sul. Hoje tem dois mil bovinos. Os machos são vendidos para reprodução, mas regra geral a carne segue para as lojas locais e só é exportada quando têm excesso.

Manuel descreve-se assim: “Sou peixeiro de profissão e criador de gado de paixão”. Herdou do pai, um tintureiro que criava porcos para ganhar mais algum dinheiro, uma “relação de afectos” com os animais. Quer mostrar-nos os bois. Da estrada de terra batida vê-se à distância de vários metros a forma como ostentam os corpos, amontoados às dezenas nas pastagens mas descomprometidos. O jipe branco sai da estrada e aproxima-se da manada. Ele caminha até ao centro e fica estático, à espera que sejam os animais a tomar a iniciativa. Gaba-lhes o físico, preocupa-se com os que dão sinais de velhice ou de fadiga.

Tem, no entanto, o despreendimento de quem sabe ao que veio. Por isso mesmo deu o salto da pesca e da criação de gado para a loja que abriu no centro da cidade há sete anos e onde vende tudo o que produz ou importa. Na Reymar há camarão, peixe fresco ou congelado, carne, charcutaria e quase tudo o resto que uma prateleira precisa: leite, cereais, sumos, azeite, hortaliças. O empresário ainda tentou fazer chegar o negócio da distribuição a outras províncias, mas a guerra obrigou-o a circunscrever o trajecto dos cinco camiões a localidades mais próximas depois de um dos veículos ter sido atingido por um tiro. “O custo é muito grande e o risco não compensa”, diz.

A ideia

Por esta altura, Joaquim começa a reclamar o seu espaço. É o cliente mais activo da loja, com uma (grande) diferença: consome sem passar pela caixa. Vai-se esquivando com mestria às reprimendas e conquista dois sumos, um pacote de bolachas e cereais de chocolate. Ao lado, no escritório, está o primeiro lanço da escadaria que Manuel começou a subir mais recentemente. O filho mais novo (tem outros três, Manuel, Zita e Emanuel) é vencido por uma folha em branco onde desenha os irmãos e por um telemóvel com jogos que o pai prefere não instalar.

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Tudo parece um projecto inacabado, como se cada secretária fosse uma maternidade de onde nascem ideias. Manuel pega nas peles de crocodilo, pretas, brancas, castanhas como se de recém-nascidos se tratassem. Há uma caçadeira propositadamente à vista. Acredita que nunca teve de a usar exactamente por isso. É tudo mais delicado agora que segura pela ponta do dedo indicador a alça de uma mala, um protótipo da linha que desenhou.

As peles dos crocodilos, que começou a criar há perto de oito anos, estão a passar a fronteira para serem transformadas em malas e sapatos. Mas o empresário quer controlar todo o processo e vai abrir uma fábrica em Moçambique. Depois fechará o ciclo com a abertura de uma loja em Maputo, onde estima que só um par de sapatilhas possa ser vendido por mil euros. “Ao contrário do que se pensa, há pessoas com muito dinheiro” num país que atravessa uma grave crise económica e financeira e onde milhões vivem abaixo do limiar da pobreza.

A ligação aos crocodilos surgiu quando comprou uma quinta de 600 hectares a um português onde planeava criar gado. Porém, a proximidade ao mar enfraquecia o pasto. A ideia surgiu-lhe depois de ler uma notícia sobre as vítimas de um ataque. “Pensei que de alguma maneira também poderia contribuir para minimizar o conflito entre homens e crocodilos”, conta. Na altura, explorava o matadouro da Beira, que estava demasiado degradado para rentabilizar e tinha uma quantidade de resíduos animais sem destino. Também já tinha um comprador de Valencia em mente e, por tudo isto, decidiu arriscar.

A Crocossassa, onde trabalham perto de 100 pessoas, está agora a finalizar um investimento de 1,5 milhões de dólares em tanques para conseguir dar um tecto aos 26 mil crocodilos do empresário, que assegura ter um dos maiores reinos da espécie em Moçambique. “Pode parecer uma loucura comprar tanto cimento e pedra que dava para fazer um prédio de sete andares, mas este negócio tem ainda mais potencial do que imaginava. Já conseguimos vender 17 mil crocodilos desde que começámos e é um animal em que aproveitamos tudo”, conta.

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Com as peles transformadas em malas e sapatos, o empresário espera abrir uma loja em Maputo, onde estima que só um par de sapatilhas possa ser vendido por mil euros

Manuel vai percorrendo as fileiras dos três mil novos tanques que estão a construir. É uma expedição feita em silêncio, um pé lentamente atrás do outro. “Os crocodilos entram em stress com o barulho e isso pode fazer com que parem de comer”, explica. Protegê-los significa proteger a pele que se tentará vender mais tarde – qualquer pequena imperfeição tira-lhe muito valor. Joaquim não parece sensibilizado, a julgar pelas corridas desenfreadas e pelos decibéis com que chama pelo pai.

O empresário não sabe o que é desperdiçar. Usa a pele do gado que cria e o peixe que pesca para alimentar os crocodilos. Há pouco tempo, acedeu a uma ideia do filho de 15 anos, que também se chama Manuel: dar-lhes um alimento muito rico em proteínas, as baratas. Publicaram um anúncio no jornal e começaram a produzi-las num balde. Agora já têm perto de uma dezena de bidões, barrados com vaselina para as impedir de chegar ao topo. Acreditam que facilmente vão estar a criar 7,5 a 10 milhões por ano.      

O futuro

O negócio dos crocodilos também começa logo de raiz, com a apanha dos ovos junto aos rios. São quase 16 mil por ano e já têm autorização para chegar aos 31 mil, com a ajuda das comunidades locais com as quais “é precisar saber sentar”. No horizonte está o projecto liderado pelo filho mais velho, que está em Portugal a gerir a Soguima com a restante família. É Emanuel, bioquímico de formação, que está a estudar os fins terapêuticos do sangue dos crocodilos. “O futuro passa por isto, por aproveitar todo o potencial que o animal nos dá, mas a prioridade é a pele”, afirma.

O cuidado com que manobrou as malas e os sapatos é redobrado quando se inclina sobre a mesa onde, com a ajuda de um foco de luz, inspecciona a qualidade da pele dos animais. As de primeira qualidade, com 20 a 30 centímetros de largura, podem chegar a valer três mil dólares. No ano passado, extraíram três mil e querem duplicar o número, apostando nas mais perfeitas. “Se fizermos de primeira qualidade enriquecemos, se fizermos de segunda empobrecemos”, remata.

Logo ao lado fica a sala onde os crocodilos são abatidos com choques eléctricos. Manuel manda abrir as janelas por causa do mau cheiro e assume que não é a parte mais bonita da visita. Diz perceber que as pessoas se indignem com o que faz, mas chama-lhe hipocrisia. “Só a pele de crocodilo é que os preocupa? Então e a pele de peixe?”, pergunta. Por falar nisso, por Portugal a Soguima também se tem destacado com a venda de móveis decorados com a pele dos seus peixes.     

Quando comprou a quinta, a motivação de Manuel era “ter um lugar para descansar, para conviver com os amigos”. Mas com os crocodilos veio a curiosidade e começaram a chegar pessoas para fazer turismo. O empresário já tem uma casa pronta, tão única quanto a rudeza dos seus traços, esculpido com as madeiras que a terra lhe dá. Enquanto está vazia, é lá que passa noites. Ao lado tem já outra quase preparada para receber quem goste de observar sem ser observado – toda ela é coberta de madeira e vidro.

O empresário também já faz dos animais um espectáculo para quem aprecia ver trinta portentos (alguns com uma tonelada de peso) a devorar carne viva, mas quer mais turismo: vai construir outras dez casas, usar os dez quilómetros de valas cobertas de água para pôr a circular um barco, continuar a dar palco a artistas locais como os que dançaram até depois do sol de pôr naquele dia. Manuel parecia não querer falar mais de si, dos seus milagres. Sentou-se, tomou um café. Já a noite se tinha feito e Joaquim mergulhava a cabeça na piscina, sinalizando com o polegar que tão cedo dali não sairia.

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