Da dor, da justiça e da liberdade

1. No dia 27 de Novembro de 1981 recebi um telefonema de um familiar dizendo que o meu irmão José, com 25 anos, tinha sido atropelado na tropa, em serviço obrigatório nos Açores, e que estava mal. Quis saber mais e a verdade acabou por vir lancinante: o Zé tinha falecido. A dor que nós, pais e irmãos, sentimos, não pode ser adequadamente expressa em palavras. Senti revolta, injustiça, uma saudade enorme e um buraco negro sem fim que se abriu no peito. Na altura só pensámos em revê-lo e despedirmo-nos dele. Nos Açores o exército deu-nos uma narrativa do acidente. Não questionámos, não indagámos da eventual negligência do exército, não pedimos indemnização. O civil, responsável pelo acidente, e que não poderia sair da ilha, acabou por fugir de São Miguel. Não se fez justiça. Mas a injustiça absoluta, a perda irreparável, a dor da ausência do Zé, é muito maior que a justiça não feita e a dor acompanhar-nos-á enquanto vivermos.

2. Os familiares dos jovens que morreram no Meco, e de todos os que perderam jovens na força da vida, sabem da dor de que falo e quero expressar-lhes a minha afectuosa simpatia, mas também realçar algo. Como bem sabem os juízes e as companhias de seguros, não há acidentes puros. Há sempre um contexto, um grau maior ou menor de negligência, nexos de causalidade que importa esclarecer. Mas vale a pena fazer justiça no meio de uma injustiça brutal que é uma morte sem sentido? Na altura, atordoado, achámos que não. Hoje acho que sim. Apurar os factos e as responsabilidades, se as houver, cumpre as funções sociais de punição e dissuasão. Os considerados responsáveis, internalizam o custo das suas acções ou omissões. Todos aqueles na sociedade que pensem em praticar actos semelhantes sabem o preço que podem pagar por eles.

3. Depois do Meco, e de tantos acidentes e humilhações, nada poderá ficar como dantes no admirável mundo novo das praxes. Estas praxes têm códigos próprios que determinam uma ascensão na hierarquia, tribunais próprios funcionando em circuito fechado à margem da lei com o beneplácito activo das associações de estudantes e passivo das instituições universitárias que viram a cara. Aqui chegados há três opções: a auto-regulação e apelo ao bom senso das comissões de praxe; a implementação de legislação que já existe reforçando a regulação (Regime Jurídico de Instituições do Ensino Superior e Estatuto do Aluno); ou alterações à legislação existente. A primeira via é manter o status quo e é uma resposta pueril. A segunda, pode ter impacto nas instituições das universidades públicas, mas não responde aos problemas das privadas onde as praxes são mais violentas (pois o poder dos estudantes que pagam propinas elevadas é maior). Defendo a terceira - aumentar a regulação das actividades de recepção aos estudantes (ARES) - para aumentar a liberdade individual. Novas ARES (que podem ou não assumir a forma de praxes) devem cumprir vários requisitos: ser limitadas no tempo; ser organizadas por comissões compostas exclusivamente por alunos inscritos devidamente identificados nas suas funções junto dos órgãos de gestão das escolas; ter códigos de conduta transparentes e aceites pela instituição; existir um provedor do estudante e um órgão de jurisdição paritário composto por docentes e estudantes para apreciar queixas. Todo o novo aluno deve receber na inscrição informação sobre “código de conduta” aprovado por cada instituição, no qual devem constar os seus direitos e deveres e os contactos de a quem se dirigir caso veja violada a sua autonomia, dignidade ou liberdade.

4. Liberdade e dignidade é algo que não imperou na Assembleia da República (AR) no grupo parlamentar do PSD, no contexto da aprovação do referendo sobre a co-adopção, uma iniciativa liderada por um deputado da JSD que ficará na história pela recente boutade de que “todos os direitos das pessoas podem ser referendados” . Já expressei o meu apoio à co-adopção (Público 20/07/13), mas focalizo-me aqui antes na questão processual. Se pouco tempo depois da aprovação na generalidade, tivesse havido a iniciativa do referendo com uma única questão, ainda poderia ser defensável, mas a AR decidiu continuar o processo legislativo normal durante mais de seis meses, com muitas sessões em comissão, ouvindo uma pluralidade de especialistas e activistas quer a favor quer contra. Fazê-lo nesta altura é atentar contra a dignidade dos parlamentares que se empenharam, com posições diferentes, neste debate. Se há lei cuja discussão foi aberta à sociedade, foi esta. Escrevi há alguns anos que “As vantagens potenciais do uso do referendo, em certas circunstâncias, não deve fazer esquecer os seus riscos, sobretudo quando é usado contra a democracia representativa e não em complemento desta.” (O Prisioneiro, o Amante e as Sereias, Almedina, 2008, p. 263). Cumpre registar a posição de cada deputado nesta matéria e é de saudar Isabel Moreira e Pedro Delgado Alves pelo empenho neste iniciativa parlamentar Teresa Leal Coelho por se ter demitido da vice-presidência do grupo fazendo jus ao seu nome.

5. Dignidade e justiça é algo que os investigadores portugueses hoje não sentem. Há dias uma jovem amiga investigadora dizia-me “nós estamos bem, e decididamente hoje vi que tomei mais acertada de vir para o Brasil – a FCT anda a cortar em tudo, financiamento de projectos, concursos e até bolsas”. O problema da FCT começa, antes de mais, no megaministério de Nuno Crato que integra Ciência, Ensino Superior, Básico e Secundário, ou seja a junção de dois ministérios. Crato anda, como todos os ministros na educação, por boas e más razões, na mira dos professores, e não pode ter tempo para a Ciência nem para o Superior. Tem delegado então na Secretária de Estado da Ciência e no Presidente da FCT, diminuindo, desta forma, a sua responsabilidade política e pessoal directa. O problema principal não está numa alteração de paradigma na atribuição de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento individuais a bolseiros integrados em programas de doutoramento ou em projectos, mas antes no atraso registado em muitos programas de doutoramento e nos cortes significativos no financiamento de projectos. Outra questão importante é a falta de transparência em todo este processo - isto é, os valores executados do orçamento da FCT parecem não ter diminuído, mas as bolsas diminuíram drasticamente. Espero que possamos, em breve, ver o Relatório de Actividades da FCT referente aos últimos anos. A FCT não se pode esquecer que a sua função não é só pedir relatórios às unidades de investigação nacionais, ela própria tem também de responder pela sua actividade ao país.

P.S. Recomendo um bom artigo de João Cardoso Rosas no D.E. de 22/01/14 sobre a FCT.

Professor do ISEG/UL e Presidente do Instituto de Políticas Públicas Thomas Jefferson – Correia da Serra
 
 

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