Crianças e sexualidade: "Vamos esfregar a barriga um no outro?"

Chegou a hora de ir dormir após um dia de campo passado entre amigos, com pais e filhos. Os irmãos Duarte, oito anos, e José, cinco anos, convidaram o amigo Filipe, colega de escola de Duarte para ficar a dormir lá em casa.

A mãe, Teresa, volta de novo ao quarto dos rapazes levada pela algazarra, excitação e risos que se ouviam no andar de baixo. Entra no quarto e vê o filho mais novo todo nu, aos saltos em cima da cama, perante o riso incontrolável dos mais velhos:
José: “Olhem para a minha pila! Parece um boomerang!”
Duarte: “Isso era o que tu querias!! Parece é uma minhoca bébé!”
Teresa: “Meninos! José, veste-te imediatamente! Não quero aqui meninos nus! Que disparate é este?!  É a segunda vez que subo as escadas! Não vos volto a avisar! Da próxima vez se não estiverem deitados e sossegados vai cada um para o seu quarto!”
Passados 20 minutos perante o silêncio, Teresa volta a subir as escadas e ouve:
Duarte: “Vamos esfregar a barriga um no outro?”
Filipe: “Eu não sou gay!”
José: “Sim, isso é de gay! Eu prefiro brincar aos médicos!”
Filipe: “Deixem-me dormir! A vossa mãe ainda aparece!”
José: “E qual é o mal?!”
Teresa permanece imóvel, com as costas coladas à parede, sem saber o que pensar ou como reagir.

Muitos, enquanto pais, vivemos situações como a que Teresa experienciou naquele momento. As questões ligadas à manifestação da sexualidade dos filhos deixam frequentemente os pais sem capacidade de reacção imediata, e com perguntas que permanecem dentro da cabeça: Isto é normal? Devo preocupar-me? Terei de estar mais alerta para evitar certos comportamentos? Devo repreender? Castigar? Ignorar? Como é que se fala sobre isto?!

Nas questões mais tradicionais de testar o limite ou a autoridade por parte dos filhos, os pais têm quase sempre esclarecido dentro de si uma forma de atuar mais ou menos clara e mais ou menos imediata. As questões sobre a sexualidade dos filhos invadem os pais de dúvidas e sentimentos de impotência face à melhor atitude a adotar, fazendo-os também reavivar a sua própria sexualidade. É importante ter presente que as manifestações de caráter sexual nestas idades têm que ser olhadas e enquadradas na etapa de desenvolvimento de cada criança, e nunca serem interpretadas à luz da forma como os adultos vivem e sentem a sexualidade.

Até aos três anos a criança está mais centrada na exploração do seu próprio corpo. A partir desta idade e até por volta dos seis anos, além de manter comportamentos dirigidos a si própria que lhe despertam sensações corporais prazerosas (por exemplo, a masturbação), passam também a ter uma curiosidade inofensiva pela exploração das diferenças do corpo do outro. É uma fase em que dirigem muitas perguntas aos pais: “Porque é que os rapazes têm pilinha e as meninas têm pipi?”; “Porque é que os rapazes fazem chichi de pé e as meninas sentadas?”, “Porque é que a minha pilinha fica dura e mais comprida?”,  “Como é que os adultos fazem os bébés?” É um tempo em que procuram respostas às suas dúvidas sobre a genitalidade, papéis de género, diferenças anatómicas, origem dos bebés, etc. Brincar aos médicos é frequentemente uma das brincadeiras de eleição, mais uma vez como forma de viver experiências gratificantes e que permitam aumentar o conhecimento sobre o seu corpo e o do outro.

A partir dos seis/sete anos até aos 11, com a entrada na escolaridade e num mundo onde a realidade passa a ter cada vez mais lugar, há uma maior reserva na partilha destas experiências, sobretudo com os pais. Aumenta a distância relativamente ao sexo oposto e as brincadeiras, mesmo as mais dirigidas para a exploração da sexualidade, acontecem frequentemente com amigos do mesmo sexo. Há, regra geral, uma acalmia destas experiências pelo dirigir da energia para as actividades escolares, sociais, desportivas e com novos interesses. No entanto, importa ter presente que o desenvolvimento varia muito de criança para criança, nomeadamente em termos de maturidade, pelo que alguns dos comportamentos mais característicos de fases anteriores podem manter-se ou apenas ocorrer mais tardiamente.

Os pais devem ter presente que nestas idades não estamos a falar de comportamentos ou trocas que envolvam atração sexual, malícia ou tenham qualquer conotação erótica. Por outro lado, é importante que estejam atentos à frequência e intensidade que a criança revela nos seus comportamentos: uma criança que intensifique, por exemplo, os comportamentos masturbatórios poderá estar a fazê-lo como forma de se acalmar ou por exposição a estímulos de caráter sexual para os quais não estava preparada (por exemplo, imagens telivisivas).

É importante ter atenção se utiliza este comportamento em público ou na sua intimidade, podendo os pais esclarecer a criança de que esta é uma parte privada da sua intimidade, que não deverá expôr. Estar igualmente atento se determinadas brincadeiras, como o brincar aos médicos, ocorrem com crianças da mesma idade ou entre idades muito díspares – as crianças com a mesma idade falam geralmente a mesma linguagem e têm um conhecimento e interpretação da realidade semelhantes, pelo que estarão mais protegidas face a “conteúdos desconhecidos” que possam ser introduzidos por crianças de idades mais distantes.

Muitas destas situações em que crianças e pais são “apanhados” devem constituir oportunidades para o diálogo sobre este tema, onde a criança deverá ser a detentora do guião para o desenrolar da conversa. Aquilo que os filhos esperam dos pais, neste e noutros temas, é que respondam com verdade e que tenham a serenidade para não reagir de forma assustada ou culpabilizadora. Reações mais negativas ou exacerbadas dirigidas a estes comportamentos só servirão para gerar culpa e retraímento, podendo mesmo intensificar a fixação em alguns destes comportamentos naturais e saudáveis que fazem parte do desenvolvimento dos filhos.

Estes deverão ser momentos de tranquilidade em que os pais não têm de ter todas as respostas, mas servem para ir preparando um terreno de abertura e confiança para fases futuras e de maior exigência a este nível, como constitui a fase da adolescência. Não esperemos que esta chegue para iniciarmos estes diálogos! Poderá mesmo constituir uma missão impossível!

Sofia Nunes Silva é psicóloga clínica e terapeuta familiar. A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico.

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