Cremações sim; mas cumprindo a Lei Ambiental

É triste que, neste país, o direito ambiental na prática permaneça um parente paupérrimo no nosso ordenamento jurídico: em contraponto com o “sacrossanto” direito financeiro e direito regulador dos valores mobiliários…

Coincidência das “coincidências”: no passado dia 1 de Novembro o PÚBLICO publicou um longo artigo sob o título: Cremações são um problema ambiental? Coincidência, porque dias antes, no dia 21 de Outubro, o Senhor Presidente da Câmara Municipal de Cascais fora notificado por cidadãos residentes em Alcabideche (Freguesia situada no Municipio de Cascais) que no exercício do Direito de Participação Procedimental Popular, em sede de matéria de interesse protegido de natureza ambiental, haviam requerido que lhes fosse informado:

Se a decisão sobre a localização e a realização de obras (em curso) para a construção de um Crematório e Centro Funerário de Cascais, em terreno contíguo ao cemitério de Alcabideche, foi precedida na sua fase de instrução dos respectivos procedimentos de audição dos cidadãos interessados e das entidades defensoras dos interesses que possam vir a ser afectados por aqueles planos ou decisões”.

Para tanto fora invocado, nomeadamente, a previsão do art.º 4.º da Lei n.º 83/95 em sede de matéria de interesse protegido de natureza ambiental e com o alcance previsto na Lei n.º 19/2006 (diploma que regula o acesso à informação ambiental).

Dado assistirem aos então requerentes sérias e fundadas dúvidas sobre o cumprimento dos devidos procedimentos, aguardam os mesmos que no prazo legal lhes seja prestada por escrito toda a informação requerida, para os devidos e legais efeitos!

Não está em causa não só qualquer motivação religiosa ou filosófica sobre o simbolismo do ritual “post mortem” como também, muito menos a prestação de um mero serviço fúnebre.

O que está em causa é, tão só, o objecto nuclear específico que visa a cremação de cadáveres, cujo processo de incineração liberta para a atmosfera emissões gasosas, onde se incluem metais pesados, como mercúrio e os designados Pops (produzidos não intencionalmente) como Dioxinas, Furanos e PCBS, como subprodutos de processo de combustão…

Ora, tais substâncias gasosas, uma vez inaladas são potencialmente susceptíveis de causar não só efeitos graves e insidiosos na saúde pública como também, com a agravante, da sua persistente permanência durante muitos anos no meio ambiente.

Por essa razão é obrigatório que o funcionamento dos fornos crematórios deva ser rigorosamente monitorizado, sem prejuízo de “ex ante” qualquer simples projecto de instalação dos mesmos, deva estar sujeito logo “ab initio”, na fase da instrução do respectivo procedimento:

Não só sujeito à audição prévia dos cidadãos interessados que possam ser afectados por tal funcionamento (mediante participação Pública) como também, ainda, “a posteriori” sujeito o mesmo projecto a uma AIA (avaliação de impacto ambiental) dependente pelo menos, desde 7 de Agosto de 2008, das conclusões técnicas a produzir por um segundo e novo grupo de trabalho nomeado para o efeito.

Grupo de trabalho esse que tinha e tem ainda o encargo de produzir normas técnicas a cujas regras deve obedecer todo o equipamento afecto à cremação existente em cemitérios e a definir por último em Portaria conjunta: dos Ministros do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, da Saúde e do Ambiente, aliás, nunca publicada, incumprindo o estabelecido no Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, em sede do direito mortuário, como ainda do previsto nos diplomas posteriores que o alteraram…

Mais; não havendo legislação específica em Portugal reguladora em concreto do funcionamento dos equipamentos afectos à actividade crematória, “os crematórios não são obrigados a comunicar as suas emissões às autoridades ambientais, segundo a informação da Agência Portuguesa do Ambiente” (conforme fora noticiado no artigo do jornal PÚBLICO, de 1 de Novembro passado).

Concluindo e resumindo:

Dado que a Agência Portuguesa do Ambiente I.P. exerce as funções de Autoridade Nacional de AIA (avaliação de impacte ambiental) ao abrigo não só do art.º 8.º - 1 al. a), como também, nomeadamente, do art.º 10.º n.º 1, todos do DL 151-B/2013, competindo-lhe exercer nesse âmbito muitas das matérias com aquela relacionada, fora essa a razão porque lhe foi dado integral conhecimento, em 22 de Outubro último, do supra mencionado requerimento procedimental dirigido ao Senhor Presidente da Câmara Municipal de Cascais.

Destarte, uma vez que a Agência Portuguesa do Ambiente tem particulares responsabilidades em matéria ambiental e sendo conhecedora de tão perversas omissões normativas desde 2007, em sede do desregulado funcionamento dos fornos crematórios – dada a sua natureza de Instituto Público integrado na administração indirecta do Estado -- se aguarda que esta requeira ao Governo para que sejam assumidas de forma definitiva as responsabilidades Políticas e administrativas decorrentes de tão inaceitável situação!

Se é verdade que Portugal como Estado-Membro da EU está vinculado à Convenção de Estocolmo ou Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes (atrás já citados sob a designação de Pops, isto é, subprodutos tóxicos não intencionais decorrente de processo de combustão) que foi assinada em 2001 e que entrou em vigor em 2004, é evidente que tais emissões gasosas decorrentes da cremação estão nela previstas não só em sede dos seus elementos constitutivos como também dos seus efeitos adversos: impõe-se que nada nem ninguém possa continuar impávido e sereno perante tal negligência grave.

O Estado não pode demitir-se escandalosamente das suas obrigações constitucionais, conforme está previsto no art.º 9.º da Constituição da República, sob a epígrafe (Tarefas Fundamentais do Estado), onde na al. d) se prevê que a este lhe compete (sic): “Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo (…) bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais (…) mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais”.

Aguardemos o desenrolar dos próximos capítulos, com o desenvolvimento do procedimento de participação popular desencadeado pelos cidadãos de Alcabideche…

É triste que, neste país, o direito ambiental na prática permaneça um parente paupérrimo no nosso ordenamento jurídico: em contraponto com o “sacrossanto” direito financeiro e direito regulador dos valores mobiliários…

De nada valem os nobres princípios previstos nos artigos 4 e 5 na Lei n.º 19/2014, sobre as Bases da Política de Ambiente.

Face ao incumprimento da Lei Ambiental, em sede do controlo das emissões produzidas nos fornos crematórios, não fosse a distância geográfica que separa Portugal dos países emergentes, talvez pudesse ele ser ainda o destino ideal para a cremação dos cidadãos destes últimos…

Impõe-se que a Sociedade Civil acorde da letargia em que se encontra. E que ponha em marcha alguns dos ensinamentos de uma grande líder mundial do desenvolvimento sustentável, como Gro Harlem Brundtland, e que se espelham magistralmente na frase: “agir localmente, pensar globalmente”, exigindo do Estado uma conduta responsável e, se necessário, judicialmente!

Advogado

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