Saúde: entre cortes razoáveis e caminho aberto para um SNS de serviços mínimos

Reacções ao Orçamento do Estado na área da saúde.

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Enric Vives-Rubio

Ao longo do último ano foi o próprio ministro da Saúde a defender várias vezes que o sector deveria ser “discriminado positivamente” nas próximas medidas de austeridade e especificamente no Orçamento do Estado para 2014. Na terça-feira o documento foi apresentado e prevê um corte de cerca de 300 milhões de euros nas verbas do Serviço Nacional de Saúde.

Especialistas ouvidos pelo PÚBLICO divergem: para uns o orçamento é razoável face à conjuntura, mas há quem ache que a soma com as medidas dos últimos anos torna a aplicação quase impossível. Para outros a redução é reveladora de um pensamento político que passa por transferir, uma vez mais, grande parte das despesas para as famílias.

Em termos da tutela, o primeiro comentário chegou pelo secretário de Estado Adjunto da Saúde, Fernando Leal da Costa, que à margem do Dia Mundial da Alimentação, citado pela Lusa, voltou a referir que é possível usar as verbas de forma mais eficiente. “Temos de nos centrar no que é absolutamente essencial”. E acrescentou: “Há dinheiro para a saúde de que precisamos”.

Uma posição corroborada ao PÚBLICO por Álvaro Almeida, professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, que considera que “o orçamento previsto é perfeitamente acomodável e razoável” dentro do actual contexto económico, acrescentando que por comparação com outros sectores a saúde sai de certa forma poupada.

A proposta de Orçamento do Estado indica que o Serviço Nacional de Saúde ao todo receberá 7582 milhões de euros, o que representa uma redução da ordem dos 3,8%. No global, as medidas sectoriais definidas para a redução de despesa a executar pelo Ministério da Saúde em 2014 ascenderão a 259,3 milhões de euros, uma meta de poupança que coloca este ministério no terceiro lugar dos que são sujeitos a maiores cortes.

Quanto à despesa total consolidada da saúde em 2014, esta está estimada em 8203,9 milhões de euros, o que corresponde a menos 847,8 milhões de euros, ou seja, uma redução de 9,4%. Um esforço que a tutela atribui às verbas que teve de canalizar para regularizar dívidas passadas.

Álvaro Almeida, também coordenador do estudo O Sector da Saúde: da Racionalização à Excelência, promovido neste ano pelo Health Cluster Portugal para encontrar medidas para o futuro da área no país, entende que este orçamento só foi possível perante o caminho seguido pelo ministério de Paulo Macedo nos últimos anos.

“Já tinham sido feitos ajustamentos muito profundos e reformas que permitiram que a despesa pública em saúde portuguesa já esteja entre as mais baixas da União Europeia, pelo menos em comparação com o PIB”, disse o economista.

Questionado sobre se as declarações de Leal da Costa apontam para uma oferta de serviços mínimos, Álvaro Almeida rejeitou a ideia, considerando que ainda existem duplicações de serviços nas organizações que “podem ser eliminados sem pôr em causa a qualidade e acesso aos cuidados”.

"Atiram-se cortes para cima dos problemas"
Mas é isso mesmo que antevê Adalberto Campos Fernandes, professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa. Ressalvando a “seriedade” com que Paulo Macedo tem trabalhado, o médico e gestor resumiria os últimos anos como “uma oportunidade perdida” em que pouco mais se investiu do que na política do medicamento e em reduções salariais, apesar de em termos de cortes financeiros “se ter ido além da troika” com um preço a pagar como a entrada tardia de medicamentos inovadores no mercado e dificuldades no sector dar farmácias e indústria.

“Há [nestas políticas] um critério subliminarmente presente de que não podem dar tudo a todos e de que se deve criar uma carteira de serviços mínimos e quem quer uma oferta mais diferenciada paga”, critica Campos Fernandes, dizendo que a despesa pública tem sido reduzida à custa do aumento da despesa das famílias “que é das mais elevadas da OCDE”.

O antigo presidente do Hospital de Santa Maria lembra que as instituições hospitalares estão em grandes dificuldades – muitas delas em situação de falência técnica –, o que obrigou o ministério a fazer transferências adicionais de verbas durante o ano, pelo que não entende como se pretende poupar mais. Uma grande fatia dos cortes anunciados, mais de 200 milhões de euros, serão precisamente conseguidos através da prometida “reforma hospitalar” e de outras medidas de contenção. Campos Fernandes insiste que “o combate ao desperdício tem um limite” e alerta que se está a abrir terreno para que um futuro Governo venha a dizer que “está a pagar dívidas deixadas por este em virtude da suborçamentação”. E reconhece que se voltasse a Santa Maria não conseguiria trabalhar com as actuais verbas, convidando os gestores privados a abraçarem o desafio.

É também esta a sensação que há no terreno, transmite a presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares. Marta Temido admite que em termos de valores o orçamento foi em linha com a prometida “discriminação positiva” e acredita que a negociação com os outros ministérios não é fácil. Mas não esconde as “preocupações” com 2014, até porque, comentando as declarações de Leal da Costa, a verdade é que “muitas vezes não se tem noção de quais são as necessidades em saúde e há algumas que nem se chegam a expressar”, pelo que a falta de planeamento só tem gerado iniquidades e “as famílias portuguesas são das que já gastam mais em saúde na OCDE”.

Por outro lado, a administradora hospitalar sublinha que este corte, ainda que mais pequeno, soma-se a anos muito difíceis e sente que “se perdeu uma oportunidade histórica para fazer uma reforma estrutural do sector”, que agora tem todos os profissionais, doentes e parceiros cansados de reduções. “Antes dizia-se que em Portugal se atirava dinheiro para cima dos problemas. Agora atiram-se cortes para cima dos problemas”, ironiza.

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